Refletir sobre a dignidade da pessoa humana é essencial para entendê-la de modo um pouco mais concreto, sobretudo como é valorada, efetivada ou desrespeitada pelos regimes políticos e modelos econômicos, em especial pelos que se dizem inspirados ou comprometidos com um projeto de democracia.
Interroga Carlos Drummond de Andrade num de seus poemas:
“Quanto vale o homem
Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?”
Embora tão essencial a todos, eixo axiológico e hermenêutico de diversos sistemas e ordenamentos jurídicos, a dignidade da pessoa humana ainda é pouco refletida e menos ainda ensinada nas escolas e universidades. Isso contribui para aprofundar o vácuo existente entre a teoria (lei) e a prática (realidade social).
É notório que a pobreza e a miséria, mazelas da humanidade desde os tempos remotos, afetam e violam a dignidade da pessoa humana. É escandaloso quando, após tanto tempo e ainda no século XXI, esses graves e violentos escárnios à dignidade são socialmente impostos às pessoas. A persistência da pobreza, da miséria, da corrupção, da fome, da doença e da morte por motivos de higiene e saneamento básico, dentre outros motivos similares, continua a acusar a consciência e a desafiar as atitudes, individual e coletiva, nas distintas sociedades. Ser rico ou abastado, contudo, não é sinônimo de ser digno nem de viver com dignidade, principalmente quando a fortuna ou os meios de subsistência forem obtidos de modo incorreto, por via do saque aos recursos que são de todos ou por meio da prática de ilicitudes, vícios ou esquemas corruptos, como também por meio de explorações indevidas e violações à dignidade dos outros. A dignidade humana pode coexistir ou não com a abundância de meios e de proventos.
O que podemos compreender então por dignidade humana?
Pode-se partir dos conceitos de dicionários, em que dignidade é a qualidade de quem é decente, honesto, respeitoso, honrado e confiável. Nessa ótica, ser digno é ter consciência do valor de si próprio, das pessoas, do que é bom, justo e belo, empenhando-se por viver em coerência com essa compreensão. Desse modo, digno é quem vive os valores da dignidade humana, ou seja, quem se empenha por se conduzir com decência, respeito, honestidade, solidariedade, justiça e beleza na vida.
Trata-se de se deixar reger e direcionar pelo que é bom, justo e belo na vida, e não apenas reivindicar direitos e materialidades condizentes com uma vida confortável, todavia, sem dignidade. Não é de hoje que o materialismo ou concepção materialista da sociedade, seja capitalista seja socialista seja comunista, é eticamente raso, assim como o idealismo alienante, dogmático e opressor. Por isso, indo além da noção materialista e idealista rasa, dignidade humana presume uma vida orientada pelo desenvolvimento ético coerente com todos os demais aspectos da existência: técnicos, profissionais, materiais, imateriais, espirituais etc.
O desenvolvimento ético e técnico, simultaneamente aos demais aspectos, é exigência da dignidade humana. É característica de quem é digno empenhar-se por ser ético, íntegro, decente, como também por ser apto e competente naquilo que faz, ou seja, ser minimante capaz e responsável tecnicamente naquilo que atua, faz ou lida. Esse traço é atributo fundamental para a coexistência em grupo, em comunidade, em sociedade, uma vez que se articula ao bem comum e qualidade de vida de todos.
A dignidade humana, por vezes, também se reflete no reconhecimento social de alguém digno. A maioria das pessoas acata e aprecia o reconhecimento público por feitos que sejam benéficos à coletividade, às condições de trabalho, aos direitos humanos e ao aprimoramento da qualidade de vida em sociedade. Trata-se de uma espécie de estímulo e incentivo à prática do bem e do que é digno.
A dignidade humana advém da condição de ser humano, do que lhe é inerente: do que é, do que foi e da potencialidade do que pode vir a ser. O indivíduo humano é um ser multifacetado, dotado de certa percepção e entendimento, além de inúmeros vínculos e relações que formam sua experiência na vida, as quais também integram o acervo tanto individual quanto da memória coletiva. Essa condição possibilita ao ser humano ser sujeito de direitos, muito embora o integral empenho pela efetiva promoção da dignidade humana historicamente tenha sempre enfrentado racismos, escravagismos, machismos, sexismos, discriminações, preconceitos, que têm servido para justificar opressivas coisificações da pessoa humana e horrendas explorações, violências e regimes políticos abusivos.
Em seu preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) esclarece que:
“o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
No seu artigo 1, a DUDH declara que:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”
Nesse sentido, não participar dos “fardos” que todos têm de carregar, deixando a cargo apenas dos outros arcar com as obrigações, dívidas e sacrifícios, pior ainda, saqueando-os, é conduta gravemente indigna, perversa e cínica, que culmina na corrupção e no crime, resultando em trágicos processos sociais. Os autores de condutas indignas não merecem aprovação social alguma por conta de tais condutas. Pelo contrário, esses devem ser punidos e reprovados na memória coletiva, uma vez que os mesmos impõem à sociedade um conjunto de consequências imprevisíveis e danosas. Nenhuma desavença ou litígio com um dos membros do coletivo, por mais grave que seja, justifica sujeitar a todos indistintamente a ônus, danos e sofrimentos. Dignidade humana presume justiça e lúcido discernimento.
O art. 1° da atual Constituição Federal brasileira dispõe que é fundamento da República e do Estado Democrático de Direito:
“III – a dignidade da pessoa humana.”
A dignidade humana pressupõe, nesse sentido, um conjunto de direitos, garantias e deveres fundamentais. Immanuel Kant, iluminista do século XVII, tratou do ser humano e de sua dignidade como “a coisa que se acha acima de todo o preço, e por isso não admite qualquer equivalência”. A razão fundamental dessa dignidade, postula o filósofo autor da crítica da razão, consiste na autonomia da vontade do ser humano, entendida como a capacidade dele se autodeterminar, de definir os horizontes e os rumos de sua própria existência. As liberdades individuais decorreriam naturalmente dessa capacidade. Não resguardar o conjunto de direitos fundamentais da pessoa e da coletividade é atentar gravosamente contra a dignidade humana. Não cumprir os deveres civis, públicos e a parte que compete a cada um para com a promoção da qualidade de vida em coletividade viola frontalmente as condições elementares da vida humana digna, estrutura basilar do regime político de orientação democrática. Ser digno é, por fim, viver senão plenamente ao menos elementarmente as qualidades humanas e os direitos e deveres nos planos individual e social, privado e público.
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