Entender a violência e criminalidade na Amazônia é um desafio instigante e que requer certa dose de empenho, todavia, impõe-se como algo extremamente necessário.
Nem todos os critérios para enfocar a matéria podem ser considerados plausíveis, por exemplo: não é consistente nem válido um enfoque que parte da existência de determinada estrutura de Estado (secretaria e aparatos oficiais), uma vez que esse é um dado muito recente do ponto de vista histórico. Na realidade, nem mesmo o enfoque que parte da instalação de estados regionais, com o início da República, pode ser um recorte considerado válido, pois implicaria em desprezar um significativo período de tempo e também de eventos relevantes na Amazônia.
A abordagem considerável válida é a que leva em conta as ocorrências de processos de violência, saque, espoliação territorial de povos nativos, recrutamento de mão-de-obra indígena para trabalhos forçados, escravidão, extermínio, os quais foram frequentes desde a época da conquista da região amazônica (séc. XVI e XVII), passando pela ocupação colonial (séc. XVII e XVIII), pela fase imperial (séc. XIX) e alcançaram a atual fase republicana da Amazônia brasileira ou Amazônia legal (a partir do final do século XIX à atualidade).
Deve-se levar em conta, nesse cenário, o dinâmico processo de constituição de limites e das fronteiras territoriais na região, envolto em inúmeros conflitos, que somente tomou a forma atual no início do século passado, com o Tratado de Petrópolis (1903), antecedido pelo Tratado de Madri (1750), pelo Tratado do Pardo (1761), pelo Tratado de Santo Idelfonso (1777) e pelo Tratado de Badajós (1801).
Nesse sentido, abordar a problemática da “Violência na Amazônia” requer, desde logo, observar o processo de composição geográfica da região, considerando a formação de seus limites e fronteiras, a usurpação de recursos ambientais, o esbulho imposto a territórios de seus povos, sua diversidade social (forma de vida em comunidades e sociedades das populações amazônicas), o silenciamento de suas lideranças, movimentos sociais e as impactantes intervenções promovidas desde os tempos da disputa territorial e da colonização europeia à atual forma de ocupação da Amazônia.
Esse persistente quadro regional, marcado por inúmeros conflitos violentos, envolvendo o confinamento indígena pelas armas, pelo garimpo, pela agropecuária, pela mineração, quase sempre resultantes na expulsão de populações tradicionais de suas terras, na usurpação de recursos, na disseminação de doenças e outros eventos de violência e de criminalidade, não poderia ocorrer, de um lado, sem a conivente omissão estatal e, de outro, pela ineficaz e cúmplice atuação do Estado na região.
Logospirataria
Traço marcante da formação social da Amazônia e, provavelmente, principal fator de violência e da insegurança pública na região persiste sendo a logospirataria.
A logospirataria é processo de desestruturação sociocultural que resulta da violação a direitos fundamentais na forma de saque, de pilhagem, de apropriação indevida, de exploração irregular e de violentas disputas pelo domínio de recursos naturais, de recursos do patrimônio genético, de conhecimentos tradicionais e da força de trabalho, seja via condição análoga a de escravo seja via relações precarizadas de trabalho no interior da floresta.
Em síntese, a logospirataria é devoradora de culturas e outros “logos” socialmente diversos na região, usurpando direitos dessa sociodiversidade amazônica por vida da apropriação, do saque e da exploração irregular de recursos naturais, de recursos do patrimônio genético, de conhecimentos tradicionais e da mão-de-obra de população tradicional ou nativa.
Esse processo vem sendo reeditado ao longo do tempo na Amazônia, estendendo-se aos dias atuais na forma de registro de patentes, de acesso irregular ao patrimônio genético, nas práticas de exploração abusiva do trabalho humano e de exploração irracional dos recursos naturais da região, além do contrabando, do descaminho e do crime de tráfico ilícito de drogas, de armas e de pessoas.
Processos de violência na Amazônia
Diante desse contexto, ao lado da reiterada ocorrência de eventos de violência histórica na região, ressaltam-se alguns dos processos que persistem nocivamente impactantes à segurança pública da Amazônia:
- Exploração irracional e altamente predatória de recursos naturais da Amazônia;
- Saque e pilhagem de recursos naturais e de recursos do patrimônio genético na região amazônica;
- Apropriação indevida e, mais recentemente, irregular do conhecimento tradicional associado à biodiversidade;
- Exploração violenta, indevida e posteriormente irregular (crime) da mão de obra de populações tradicionais (sobretudo a escravidão indígena), delito que se manifesta atualmente com relação a exploração do trabalho de membros de comunidades tradicionais, de agricultores, de ribeirinhos, de seringueiros submetidos à redução a condição análoga à de escravo ou ainda a relações de trabalho precarizadas;
- Tráfico ilícito de drogas, pessoas e armas, desde a época da conquista;
- Disputas pelo mercado do ilícito entre organizações criminosas (orgcrim’s), entre facções, entre traficantes e “barrigas d’água” (piratas de rio), alto grau de letalidade por conta da política “guerra contra as drogas” e do modelo monolítico de repressão “polícia-judiciário-presídio”: homicídios nas ruas (execuções), nos rios (tiroteios e mortes entre ribeirinhos, piratas de rio e traficantes) e nos cárceres (chacinas em presídios em Manaus);
- Uso de falsas notícias e da desinformação (fake news) pelas facções do crime (orgcrim’s) com vistas à tentativa de manipular a disposição subjetiva da população, de modo geral, em direção a certo estado pânico e a potencializar os efeito do ambiente de insegurança pública generalizado;
- Aumento do recrutamento de adolescentes e jovens pela economia do crime via organizações e facções criminosas: elevação das ocorrências e dos indicadores de criminalidade;
- Alto custo econômico, financeiro e social do combate apenas pela via repressiva (modelo polícia-judiciário-presídio) da violência, da criminalidade, da guerra contra as drogas;
- Viciado funcionamento do sistema modelo político-administrativo: a logospirataria política;
- Desmonte de estruturas estatais para lidar com crises e questões ambientais; e gradual esvaziamento do modelo Zona Franca de Manaus (ZFM).
Frente a essas e outras questões, envolvendo fronteiras, comunidades ribeirinhas, populações tradicionais, disputas territoriais, espoliação de recursos, revelam-se a debilidade institucional, a omissão e a ineficácia do Estado brasileiro como características dominantes, inclusive de forma naturalizada, desde os tempos remotos de formação social da Amazônia (ações historicamente muito aquém da demandada para enfrentar graves problemas regionais) aos tempos atuais.
Enfim, para lidar com questões de violência na Amazônia não têm sido suficientes as estratégias e táticas das forças polícias, das forças armadas, dos cárceres e presídios, e dos instrumentos apenas típicos do modelo repressivo. A problemática da violência e da criminalidade na região amazônica requer ações estatais sistêmicas e integradas socialmente, de modo que alcancem efetivamente as demandas que afligem a sociedade amazonense, amazônica e brasileira, desde suas fronteiras aos centros urbanos, municípios e metrópoles. Faz-se urgente a construção de possibilidades de respostas sistêmicas à violência e à economia do crime, na Amazônia legal como a toda a sociedade brasileira.
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