Em duas semanas de horário eleitoral gratuito e entrevistas no rádio e na TV dos candidatos a prefeito, a impressão é que as pessoas vivem na cidade apenas para andar de ônibus, ir ao shopping e trabalhar como se essa fosse uma necessidade básica única em que a vida urbana se resume ao deslocamento – ou à mobilidade, para citar um termo ‘chique’. Nas promessas mirabolantes, e impossíveis de se tornarem serviços públicos reais, basta pôr asfalto e ônibus nas ruas que a vida de todos está resolvida. Ou seja, pela concepção político-partidária, a vida urbana se resume a transporte e trabalho. Ah! Para alguns, umas crechezinhas também são soluções milagrosas.
Ser prefeito, nesse conceito bem particular de gestão pública, é apenas adotar providências técnicas para questões físicas. O elemento humano é apenas uma desculpa para justificar projetos imediatistas. Não há propostas que reforcem a simbiose entre habitantes e espaço urbano, relação que molda o comportamento – para o bem ou para o mal –, esculpe a identidade social, solidifica a cidadania e satisfaz desejos.
Em Cidades Rebeldes, um ensaio revolucionário sobre o direito à cidade, o geógrafo David Harvey resume brilhantemente a situação: “A questão do tipo de cidade que queremos não pode ser separada da questão do tipo de pessoas que queremos ser, que tipos de relações sociais buscamos, que relações com a natureza nos satisfazem mais, que estilo de vida desejamos levar, quais são nossos valores estéticos. O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que ela incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com os nossos mais profundos desejos”. (Cidades Rebeldes, Ed. Martins Fontes – 1ª edição)
São raríssimas no Brasil as cidades que incluem os habitantes em seu corpo estrutural de modo a torná-los a razão de ser da urbanidade: não o morador de um lugar, mas os seres que têm nesse espaço de convivência as condições favoráveis para exercer, e aperfeiçoar, sua própria humanidade. Ironicamente, as cidades não possuem redes de sociabilidade, mecanismos que possibilitem aos habitantes se encontrarem e compartilharem necessidades e desejos. Hoje, essa relação humana ocorre no mundo virtual, com cada cidadão confinado em seu bit habitacional.
Não há nas propostas políticas projetos de médio e longo prazos que tornem as cidades um fator de inclusão. O que se vê são sugestões para atenuar problemas pontuais a partir de uma concepção política que não assegura o direito à cidade, mas apenas minimiza um incômodo urbano. Em Manaus, para ficar em um exemplo próximo deste autor, há pelo menos dois séculos não se consegue conciliar necessidade de deslocamento urbano com transporte coletivo. As propostas políticas são sempre as mesmas e inviáveis: passagem de ‘graça’ para alguns.
“O direito à cidade como existe hoje, como se constitui atualmente, encontra-se muito mais estreitamente confinado, na maior parte dos casos, nas mãos de uma pequena elite política e econômica com condições de moldar a cidade cada vez mais segundo suas necessidades particulares e seus mais profundos desejos”, diz David Harvey em seu ensaio, profeticamente atual.
Conforme o geógrafo, “o direito à cidade deve ser entendido não como um direito ao que já existe, mas como um direito de reconstruir e recriar a cidade como um corpo político socialista com uma imagem totalmente distinta: que erradique a pobreza e a desigualdade social e cure as feridas da desastrosa degradação ambiental. Para que isso aconteça, a produção das formas destrutivas de urbanização que facilitam a eterna acumulação de capital deve ser interrompida”.
De fato, o homem busca se inserir dentro da cidade por seus próprios meios e recursos em um ambiente cada vez mais desfavorável em que os núcleos melhores urbanizados são reservados a uma elite política e econômica mais influente, portanto dominante. As políticas públicas contemplam poucos e excluem muitos. Criam-se instrumentos para arquitetar uma cidade a qual não se tem direito. Manaus, por exemplo, é uma cidade planejada pelas invasões de terras que ampliam o conceito e a identidade de periferia, debilitam o exercício da cidadania e tornam permanente o conflito com o meio ambiente como se a natureza fosse um inimigo urbano a ser definitivamente eliminado.
Entre nove postulantes à Prefeitura de Manaus, nenhum apresentou até agora um plano macro para tornar a cidade desejável e prazerosamente habitável, não só durante quatro anos, mas por décadas, séculos. Ao resumir suas visões de cidade a asfaltar ruas e colocar mais ônibus para circular de um lado para o outro sem um destino que equilibre acesso fácil aos meios de produção e lazer com direito à moradia digna e cidadã, fica a dúvida sobre a capacidade dos candidatos de saberem usar recursos financeiros, humanos e ambientais para proporcionar bem-estar urbano.
Os roqueiros Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer já haviam refletido brilhantemente sobre a questão na canção ‘Comida’, da qual deixo para a reflexão do leitor os versos a seguir:
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade…
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
Cleber Oliveira é jornalista, graduado pela Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso (RJ). Foi repórter e editor na Rádio Federal (RJ), jornal A Notícia (Manaus), Folha Popular (Manaus), e repórter, editor e editor-executivo da TV Cultura Amazonas (Funtec) e dos jornais Amazonas em Tempo e Diário do Amazonas, ambos em Manaus. Também foi articulista no Diário do Amazonas e atualmente é editor no site AMAZONAS ATUAL.
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