Como construir uma carreira política, na qual o compromisso do trabalho, seja legislativo ou de gestor, é com o bem-estar público, sem constituir uma relação promíscua com o dinheiro e os interesses privados?
Pensemos…
Impossível, dirão os que veem na relação público-privada uma simbiose política ‘natural’.
De congênita, a vida público-privada não tem nada. É intencional, planejada antes no âmbito privado para ampliar e reforçar seu status quo com o uso dos meios públicos. É uma idiossincrasia. Com base no princípio de que os governos não produzem bens de consumo, mas arrecadam impostos e os investem em serviços à sociedade, o uso do poder público como meio de enriquecimento ilícito e manutenção de ‘direitos’ civis acima da lei para uma elite política e empresarial é uma inversão dos valores não só morais como legais sem exceções à regra. É a lei dos fins que justificam os meios, no Brasil cada vez mais ‘natural’. Roubar da sociedade parece uma identidade, uma característica cultural. É tão brasileiro.
Nesse Brasil diferenciado, em que tudo é permitido, os homens ‘públicos’ criam, por um lado, os meios para facilitar e assegurar seus interesses, privilégios e regalias e, por outro, as dificuldades que impedem suprir as demandas da sociedade. Como instituições base da democracia, Legislativo e Executivo perderam essa essência. São, a cada dia, menos instituições e mais corporações. Nessa condição se distanciam dos cidadãos e da lei e se aproximam do crime. Na realidade brasileira do momento, não seria exagero considerar que uma parte da representatividade política tenta não ser presa e a outra tenta sair da cadeia. Há, claro, as exceções. Mas são raras. Raríssimas.
Outra dúvida surge nessa sociedade paralela à do cidadão comum: como ‘homens públicos’ enrolados com a lei e desmascarados em sua conduta pública nada republicana conseguem manter a ‘simpatia’ eleitoral e retornar ao status quo político? Freud, definitivamente, não explica. Mas Macunaíma sim. O herói sem caráter é reflexo de seu meio. Por essa interpretação, na visão de Mário de Andrade, o povo brasileiro não tem um caráter definido e o País é grande segundo a metáfora do corpo de Macunaíma, mas imaturo. Seria Renan Calheiros um Macunaíma do país dos ‘coxinhas’ e ‘petralhas’?
Força de equilíbrio nesse distúrbio democrático, o Judiciário parece ter assumido seu lado macunaímico. A Justiça já não é mais justa quando se trata de defender o estado de direito. Como os outros poderes, é ágil em criar privilégios e regalias, mas lenta em aplicar a lei. Essa ‘natureza’ peculiar do Judiciário se espalha por suas ramificações: Ministério Público, polícias e tribunais de contas. Seus integrantes, fechados no corporativismo, exercem poder de pressão com um instrumento político poderoso: a supressão dos serviços públicos tornando os cidadãos reféns do desamparo do Estado. O caso de Vitória (ES) é exemplar. Do Rio de Janeiro também. Em ambos, o povo é vítima da corrupção endêmica, da total falta de compromisso público e da incompetência gerencial da coisa pública. Até questões simples, como o preço da passagem no transporte público, um fator essencialmente econômico, é transformado em manobra populista com consequências desastrosas para a sociedade.
Essas corporações têm algo em comum: o custo. São caríssimas e têm uma fome insaciável por mais dinheiro. É o cúmulo da ironia: instituições responsáveis pelo bem-estar da sociedade retiram dela o máximo que podem de seus recursos sem nenhuma contrapartida. Ou, quando oferecem, é de má qualidade. É um status quo excludente. Para uma minoria, o melhor dos mundos. Para a maioria, o pior.
Não faz muito sentido usar o termo ‘instituição pública’ para denominar entidades com perfil cada vez mais privado. Retornando à questão inicial desta reflexão, a dúvida não é mais construir uma carreira pública sem se deixar contaminar pelos interesses privados, mas a certeza de que no Brasil de Macunaíma é cada vez mais aceitável construir uma carreira privada tirando o máximo proveito dos bens públicos em detrimento da sociedade.
Cleber Oliveira é jornalista, graduado pela Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso (RJ). Foi repórter e editor na Rádio Federal (RJ), jornal A Notícia (Manaus), Folha Popular (Manaus), e repórter, editor e editor-executivo da TV Cultura Amazonas (Funtec) e dos jornais Amazonas em Tempo e Diário do Amazonas, ambos em Manaus. Também foi articulista no Diário do Amazonas e atualmente é editor no site AMAZONAS ATUAL.
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