É quase lei. A versão, sempre a conveniente, é usada para anular os fatos, ou distorcê-los, e a narrativa de defesa substitui a apresentação de provas. Nessa espécie de status quo político a presunção de inocência ganha uma nova tese, aceita, inclusive, por parte da Justiça: ‘ninguém é inocente até que se prove o contrário’, mas ‘ninguém é culpado de nada porque o ilegal é legal’. Como na teoria do lulopetismo, caixa 2 não é ilegal porque é contra a lei, mas é legal porque todo mundo faz. Simples, assim.
Também é desse entendimento discursos como “ser investigado não é demérito, o demérito é ser condenado”, nas palavras do senador Romero Jucá (PMDB), um especialista no assunto. Por esse conceito de moral jucaniana, não existe a condição de suspeito porque se o investigado não vê desmerecimento em ser suspeito isso basta para ser inocente e merecer estima. O correto – no sentido de obedecer às regras – seria não ser investigado por nada, isto é, não ser suspeito de ter infringido a lei. Pela tese de Jucá, é o contrário. Ser suspeito e alvo de investigação são méritos. Honra, até. Vergonha é ser condenado. Ou, cada vez mais comum, se deixar condenar, dar mole para a lei.
Nesse mundo jucaniano predomina o horror. Não no sentido do medo extremo, da violência satânica, mas na acepção de que as coisas são tão absurdas que horrorizam. Causam espanto que aconteçam e são aceitas pela sociedade como normal. Há algo mais bizarro e horroroso que o senador Edson Lobão (PMDB), investigado na Operação Lava Jato – quanta honra –, ser presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado? Suspeito de crime de corrupção, um mérito, Lobão lidera o grupo que decide o que é constitucional e justo. Para eles, não para nós. E, não poderia ser diferente, o senador já decidiu sobre quem cometeu crime de caixa 2: “Eu quero dizer que é constitucional a figura da anistia, qualquer que seja ela. Anistia não se faz somente para isso, outros crimes podem ser anistiados”, declarou.
Ou seja, reconheceu que caixa 2 é crime.
Para Lobão, adepto da filosofia jucaniana, há crimes na política, como o caixa 2, mas não passíveis de punição e sim de perdão. Sempre. O pensamento lobãoniano defende que o poder público tem que se ausentar do poder de punir e tornar aqueles que cometeram um crime, impuníveis.
Não comemore. Essa regra que torna o ilegal legal não vale para você, a menos que você tenha um mandato obtido nas urnas. Ou seja, concedido pelo seu eleitorado. Assim como a anistia, que é genérica e envolve todos, votar não é mais um exercício de escolha da representatividade política, mas a concessão de um salvo conduto para que atos ilegais de seu escolhido sejam legais porque, enquanto político, e só por isso, o ilegal, quando se aplica a ele, é legal. É a versão moderna do ‘sabe com quem está falando?’.
O que está em curso no Brasil é a desconstrução da lei, em primeiro lugar, e da Justiça em segundo tornando a classe política uma categoria de cidadãos acima das regras de conduta moral. É uma casta na qual tudo é permitido. Não porque é legal juridicamente, mas porque é legal só para eles. O que importa é que a opinião pública acredite nessa narrativa e, uma vez crendo nela, fortaleça-a, apoie e a defenda. Pelo ritmo com que os absurdos de sucedem, tudo indica que a elite política está tendo sucesso em criar seu próprio mundo.
Desconstrução da lei porque, nesse Brasil jucaniano, o legal não está mais na lei, mas no que se diz que é legal. Não é mais preciso provar a inocência, basta dizer que é inocente. E pronto. Desconstrução da Justiça porque ela é, de fato, diferenciada. Para o cidadão comum, o rigor da norma. Para outros, o foro privilegiado. Os olhos vendados não simbolizam mais a imparcialidade e a ideia de que diante da lei, todos são iguais, mas que para alguns a Justiça olha com mais condescendência.
A balança também não simboliza mais o equilíbrio de forças, correntes antagônicas, a ponderação e a imparcialidade, mas que há sempre um lado mais forte e outro fraco. Nem a espada escapa da desconstrução de sua simbologia. Não representa mais a capacidade de exercer o poder de decisão da Justiça e o rigor da condenação, mas sim de servir apenas para cortar o lado mais fraco.
É fato que o juiz Sérgio Moro e o grupo de procuradores que o assessoram na Operação Lava Jato conseguiram evitar, por enquanto, que os fatos que exigem justiça fossem demolidos pelas versões apresentadas. É um sinal de esperança e um marco da história da corrupção no Brasil. Podemos acreditar que o ilegal é não só punível como precisa ser punido porque é uma questão legal. O que vale é a lei, não a versão que cada um tem dela.
Isso sim é muito legal.
Cleber Oliveira é jornalista, graduado pela Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso (RJ). Foi repórter e editor na Rádio Federal (RJ), jornal A Notícia (Manaus), Folha Popular (Manaus), e repórter, editor e editor-executivo da TV Cultura Amazonas (Funtec) e dos jornais Amazonas em Tempo e Diário do Amazonas, ambos em Manaus. Também foi articulista no Diário do Amazonas e atualmente é editor no site AMAZONAS ATUAL.
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