Vivemos irremediavelmente imersos no fetiche da mercadoria, o que nos recomenda adotar um estado permanente de reflexão sobre o modo impactante imposto pelo cotidiano da contemporaneidade na subjetividade das pessoas, sua visão de mundo e sua justificativa de presença na história pela ótica ou condição de inveterados consumidores.
As mais variadas manifestações artísticas, bem como as publicações literárias, sempre tiveram um papel fundamental de extrema importância para atender a necessidade da consciência em justificar a existência, e estabelecer/ensaiar o lugar de cada um nas relações sociais. Arte ou literatura, anúncio ou denúncia, revelam o universo viável para as mais diversas expressões do pensar e do existir, através ou por causa de ideias, sentimentos e percepções condicionadas em cada sociedade e a cada era.
Dessa forma, temos alguns instrumentos para entender fragmentos da realidade de uma época com base as manifestações artísticas/literárias predominantes, seus produtos culturais, não necessariamente compreendido ou universalmente valorizado pelo senso comum.
O fato é que nunca houve sociedade tão complexa e desenvolvida como esta, marcada pela intensidade frenética da mudança, e ao mesmo tempo imutável do ponto de vista da posse dos meios de produção. Os donos do poder mudaram as franjas de sua aparência e cristalizaram a fortaleza de sua existência. Jamais se revelou tão complexo de se compreender o verdadeiro funcionamento da totalidade a que estamos submetidos. Contudo, uma análise não só das produções artísticas, mas também de suas inserções no mercado, abre oportunidades de compreensão para o estado de miséria em que se flagra o pensamento e a coisificação da sensibilidade do universo digital/virtual, absolutamente imponderável e insustentável.
Na primeira metade do século passado um grande pensador alemão foi capaz de sintetizar/sistematizar um instrumental teórico e metodológico extremamente ideias pertinentes para olhar mais de perto essas provocações: Theodor Adorno. Um filósofo da chamada Escola de Frankfurt, que inaugurou a descrição do processo mercantilizador da cultura que as duas grandes guerras do século XX produziram e que desembarcou na aldeia globalizada do consumo e os pressupostos vitais de sua radicalização.
O ponto de partida é a releitura feita por Adorno sobre o conceito de mercadoria em Marx, segundo o qual, no capitalismo é absolutamente imprescindível ter presente que no cotidiano e na história tudo factível de ser ou tornar-se é mercadoria, na variação do valor de uso ou de troca. Na estrutura das relações e na conjuntura das manifestações culturais, nem mesmo a arte nem as narrativas literárias foram capazes de se emancipar da dominação do capital, da coisificação universal. Todos os tipos de manifestação artística são reféns de uma lógica sistêmica, do fetichismo da mercadoria, denominada pelos frankfurtianos de Indústria Cultural: a forma com que o processo mercantilizador atropelou a crítica representada pelas manifestações da cultura.
Recorrendo à ética kantiana e teoria psicanalítica desenvolvida por Sigmund Freud, Adorno demonstrou que o capitalismo sofisticou uma padronização estética e comunicativa que define valor de mercado, o que é o bom e o bem, o desejo e sua proibição como valoração mercadológica, a estética das gôndolas do supermercado.
Isso aportou na “mesmificação” das relações cotidianas vendidas como lançamento de novidades, isto é, o que temos a cada dia é sempre o mais do mesmo. Temos a impressão que sempre se criam coisas novas com grande diversidade, porém o fato é que no mundo mainstream, em essência, é tudo sempre igual, com embalagens diferentes, para então atingir os mais variados públicos, manipular o desejo para subjetivar a massificação..
É possível ter assistido praticamente todos os filmes da Julia Roberts, tendo assistido apenas um, são na essência e atrás de aparentes detalhes de diferenças, radicalmente, todos iguais. Vemos esse processo em inúmeros outros casos, como do ator Adam Sandler. Ou a série Velozes e Furiosos… metamorfoseados nas Olimpíadas em suas impiedosas manifestações.
No campo da música há uma mecânica um pouco diferente, dada a dialética dissonante do acordes musicais, expressões melódicas de conflitos em aparente é desconcertante harmonia. Mesmo assim, a lógica de manipular determinados sentimentos e definir o lugar certo de mercantilizar os desejo….permanece, assim como o sistemático incentivo para abolir a reflexão. A banda AC/DC é uma grande ilustração melódica de tudo disso: repleta de clássicos, onde na verdade, a estrutura musical é invariavelmente igual em praticamente todas as produções, pois em nome dos negócios, assim como no futebol, em banda que está vendendo muitos álbuns, não se mexe. Continua…
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