Em 13 de maio de 1888, a regente do Brasil, Princesa Isabel assinava a Lei Áurea, que decretava a abolição da escravidão no Brasil depois de quase 400 anos de permanência de uma economia imperial baseada no trabalho escravo e na violência institucional do branco sobre o negro. A assinatura da Lei Áurea foi resultado de uma pressão interna e internacional muito intensa. Em nível interno os grupos abolicionistas foram ganhando cada vez mais força e envolviam debates políticos, econômicos, sociais e culturais que questionavam a prática e a permanência da escravidão.
Os afrodescendentes participaram de forma decisiva dos processos de abolição da escravatura ampliando as inúmeras campanhas populares que pressionavam o Império desde o século anterior para que a instituição da escravidão fosse abolida. Por quase quatro séculos, a sociedade brasileira conviveu com a escravidão institucionalizada e foi naturalizando as relações de poder e dominação consolidadas pelo sociólogo Gilberto Freyre, em 1933, como duas classes sociais definidas em “Casa-Grande & Senzala”. Esta definição impôs um distanciamento social e econômico intransponível entre brancos e negros no Brasil, que, ao lado dePortoRicoeCubaforam os últimos países escravocratas do continente americano.
A escravidão delineou a economia açucareira e cafeeira no Brasil, mas, também esteve estreitamente vinculada à construção civil de grandes obras como o teatro Amazonas. A exploração do trabalho escravo resultou num processo de produção de grandes fortunas jamais adquiridas em outro modo de produção econômica. Fortunas estas centralizadas na casa grande, jamais divididas com a senzala. Por isso, alguns autores como o sociólogo Jessé Souza em sua obra ‘a elite do atraso: da escravidão à lava-jato’, afirmam que o Brasil não libertou os escravos mas, ao contrário, “se libertou dos afrodescendentes que viviam no país em regime de escravidão”.
Ao ‘se libertar’ destes trabalhadores escravizados, a Lei Áurea não previu um processo de reintegração dos afrodescendentes à sociedade numa relação de igualdade de direitos. Desta forma, uma vez ‘libertos’, os trabalhadores e suas famílias foram abandonados à própria sorte, sem terra, sem teto, sem trabalho, sem comida, sem cidadania.
Depois da Lei Áurea de 1888, que decretou o fim da institucionalização da escravidão, demorou-se quase um século para se implementar uma legislação com o objetivo de mudar o recorte racista na sociedade brasileira. Somente em 1951, mediante grande pressão popular, foi decretada a Lei Afonso Arinos, que transformou o preconceito de raça em contravenção. Mesmo assim sem uma tipificação adequada que somente foi definida quase 40 anos depois, em 1989 com a Lei Alberto de Oliveira, também conhecida como Lei Caó, que tipificou o crime de racismo e definiu suas penalidades. A partir de então, questões relacionadas a discriminação ou preconceito de raça passou a ser crime, punido com dois a cinco anos de prisão.
A ausência de um projeto de integração dos escravos libertos à sociedade fez com que perdurassem práticas de exploração análogas ao trabalho escravo até os dias de hoje. O artigo 149 do Código Penal brasileiro define “escravismo como toda forma de trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador” e, ao mesmo tempo, estabelece as penalidades para a grave infração. Mesmo assim, a exploração do trabalho encontra-se tão naturalizada no Brasil, que continua recorrente em praticamente todos os estados da federação com predominância na Amazônia. E, a grande maioria dos trabalhadores(as) explorados em situação análoga à escravidão é negra.
A demora em estabelecer marcos legais para conter o racismo no Brasil abriu precedentes para as desigualdades sociais pautadas nas questões de raça. Isso explica, em partes, a dificuldade que a sociedade apresenta em reconhecer práticas racistas e buscar superá-las.
No Brasil, de acordo com os dados o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade da população brasileira se autodefine como negra. Isso representa mais de 106 milhões de pessoas. Os mesmos dados, porém, afirmam que os negros têm todos os indicadores sociais inferiores aos dos brancos no Brasil. Na educação, uma média de 22% da população branca tem ensino médio completo. Isso representa mais que o dobro do percentual entre os negros, que é de 10%. Com relação à renda salarial, os mesmos dados apontam que brancos ganhavam em 2013, em média R$ 1.600,00, quase 700 reais a mais que o salário médio dos negros, que era de R$ 921. Essa desigualdade racial no Brasil é resultado de um processo histórico que não tem permitido aos negros os mesmos direitos que os brancos têm.
Diante disso, infelizmente, ainda não temos muito o que comemorar neste dia 13 de maio. Ainda existe um enorme abismo entre brancos e negros que precisamos transpor para podermos nos reunir no grande terreiro da irmandade para festejar, cantar e dançar o ‘canto das sete raças’ e celebrar, finalmente, o dia da libertação.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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