Em um contexto tenso de avanço da destruição da Amazônia permitido e incentivado por políticas de desmatamento e incêndio da floresta, grilagem de terras, invasão de territórios indígenas, avanço da lavra garimpeira ilegal e violação dos direitos dos povos da floresta, surge um sinal de alento e esperança.
A tese doutoral intitulada ‘A revoada e o canto dos pássaros no Parque Nacional do Viruá, Roraima: manifestação simbólica e equilíbrio ambiental’ de autoria de Shigeaki Ueki Alves da Paixão, recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade Federal do Amazonas, retoma o sentido de todas as formas de vida na Amazônia simbolizado na simplicidade e beleza dos pássaros e na gratuidade da melodia de seus cantos.
Fundamentada nos sistemas simbólicos e manifestações socioculturais na Amazônia, linha de pesquisa 01 do PPGSCA, a tese foi orientada pela professora doutora Iraildes Caldas Torres e contou com uma banca examinadora formada por estudiosos/as da Amazônia.
Nos quatro anos de estudos, o recém doutor sistematizou diversos aspectos da sociobiodiversidade no território do Parque Nacional do Viruá, localizado na região centro-sul do Estado de Roraima, no Município de Caracaraí, a 200 Km de Boa Vista. Enfatizou a importância da atuação de agentes socioambientais no cuidado e proteção de territórios estratégicos. Nessa perspectiva reconhece a importância das comunidades tradicionais que vivem no entorno do parque e o árduo trabalho dos funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A tese apresenta importante relevância social e antropológica. De acordo com o pesquisador “os moradores do entorno do Parque Nacional do Viruá estabelecem com a natureza viva e circundante dos pássaros, seus cantos, revoadas e função ecológica, aspectos fundamentais para o equilíbrio do ecossistema”. E afirma ainda que “os principais resultados revelam que a relação entre os pássaros e os moradores do Parque Nacional do Viruá representa uma sinergia, reciprocidade e integração natureza/cultura em relação ao equilíbrio do planeta”.
Os povos tradicionais são apresentados como “moradores do entorno”. O pesquisador confere aos povos tradicionais o título de “guardiões do Viruá” numa relação de “respeito pelas normas sociais estabelecidas com a natureza” e observa que “a manutenção da vida e da permanência destes habitantes no entorno do parque é fundamental para a proteção ambiental”, conferindo-lhes importante protagonismo.
Os povos tradicionais também são apresentados na tese como sujeitos políticos: “Encontramos esta lógica de cuidado e proteção nos modos de vida dos povos tradicionais que habitam as florestas e as margens do rio Branco do Parque Nacional do Viruá […] que marcam as ações políticas e identitárias”. E os centraliza numa relação de reciprocidade ao afirmar que “os moradores do entorno do Parque Nacional do Viruá sobrevivem da agricultura local, especialmente a roça de mandioca, milho, banana, que são alimentos básicos da dieta alimentar da região”.
Os povos tradicionais representam a categoria de análise mais aprofundada na tese que estabelece uma relação ampla para além do parque. São apresentados como interlocutores da pesquisa e como agentes ambientais ativos e efetivos na relação com o Parque do Viruá e afirma que “para os povos tradicionais da Amazônia, a floresta em sua completude é o centro vital cósmico da existência e da resistência”.
De grande relevância política e social, a tese sustenta a importância “dos mecanismos de manejo ambiental dos ecossistemas que permeiam a unidade, levando-se em conta a interatividade entre os povos tradicionais que são moradores do entorno do parque com os animais e a natureza de modo geral”. Insiste que “as aves têm extrema importância para o meio ambiente em sua revitalização e equilíbrio ambiental” para muito além da sua beleza física e do interesse dos ornitólogos (estudiosos dos pássaros). No caso do Viruá, as aves representam o equilíbrio do ecossistema e “atraem pessoas do mundo todo porque só são encontradas no ecossistema do Parque Nacional do Viruá”.
Com destemida coragem, Shigeaki da Paixão interpela o governo federal a rever sua relação com a questão ambiental na Amazônia e afirma que “a responsabilidade pública do Governo Federal por este bem socioambiental é parte constitutiva da política do patrimônio natural do país, mas não só isso. Esta reserva é também estratégica para a gestão pública, porque passa a ser um campo piloto para a implementação de novos modelos sustentáveis e possibilidades de estruturação de novas concepções bioeconômicas”.
Dada a sua relevância científica a tese apresenta o “Canto dos Pássaros” primeiramente como uma provocação ao debate socioambiental naquela perspectiva da Laudato Si’, a encíclica do Papa Francisco publicada em maio de 2015 que trata do cuidado com o meio ambiente e com todas as pessoas. É uma carta pública do Papa dirigida a “toda pessoa que habita este planeta” que propõe a Ecologia Integral como um modo de vida e recorda que “tudo está interligado como se fôssemos um/uma”.
Em um estado fundado no extrativismo mineral, obcecado com a extração comercial ilegal do ouro e de outros minérios de valor comercial, que deixa um rastro de destruição e contaminação em todo território, o pesquisador ousa apresentar “a revoada dos pássaros como recurso/bem natural a ser cuidado e multiplicado”. Nesse contexto essa proposta representa uma verdadeira revolução na questão socioambiental em Roraima.
A banca examinadora sugeriu que a tese fosse publicada para garantir maior circulação do conhecimento produzido. Enquanto isso, poderá ser lida no banco de teses da UFAM disponível em: https://tede.ufam.edu.br/ bem como em artigos publicados com os desdobramentos em novos estudos da temática. Vida longa ao novo doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia!
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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