Uma das tipologias de violência contra as mulheres mais covardes é a violência obstétrica na qual a mulher não tem a menor condição de reagir e se defender. Há poucos meses a sociedade brasileira ficou em choque ao acompanhar as notícias sobre o médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, preso em flagrante por estupro de uma mulher durante o parto em um hospital no Rio de Janeiro (Leia Aqui).
Entretanto, este não é um fato isolado. E infelizmente é um tema pouco debatido porque envolve relações de poder muito complexas e o corporativismo de uma classe profissional pouco acostumada ao debate sobre seu exercício de trabalho. De tão frequente, a violência obstétrica no Brasil acabou sendo ‘naturalizada’ a ponto de não se imaginar parto sem dor e sofrimento provocados por elementos/eventos externos aos movimentos próprios do nascimento de uma nova vida. De tão naturalizada, os algozes não conseguem nem mesmo reconhecer que determinados procedimentos, comentários e atitudes são altamente agressivos e violentos.
É histórica a desumanização do parto no Brasil fazendo com que um momento de celebração da nova vida que nasce, se torne um fato patológico e um risco à vida das mulheres. Esses temas tão difíceis de serem tratados foram apresentados na defesa de Dissertação de mestrado da mais nova mestra do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, da qual tive a grata satisfação de participar e contribuir.
Vinculada à Linha de pesquisa ‘Gestão social, Desenvolvimento, Ambiente, Direitos humanos, Cultura e Diversidade socioambiental’, a dissertação foi orientada pela Professora Doutora Iraildes Caldas Torres. Resultado de intensa e extensa pesquisa de campo o estudo desenvolvido pela assistente social Ana Paula Dias Corrêa, Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
De acordo com a pesquisadora, realizou “um estudo sobre a atenção ao parto e nascimento na cidade de Manaus, a partir das denúncias registradas pelo Humaniza Coletivo Feminista, Organização Não Governamental de mulheres que promove o enfrentamento à violência obstétrica no Amazonas”.
Fundamentada em extensa pesquisa teórica, a pesquisadora aponta que “a violência obstétrica é uma das expressões da violência contra a mulher, fundamentada no sistema patriarcal e nas desigualdades de gênero. Trata-se de um conjunto de ações praticadas principalmente por profissionais de saúde, no contexto da atenção ao parto e nascimento, que ferem a integridade das mulheres, podendo também atingir o bebê, o acompanhante e a família”.
A partir dos estudos interdisciplinares, a autora reconhece que “ao longo da última década, houve um esforço, principalmente por parte dos movimentos de mulheres, em realizar debates e estudos sobre o tema, para traçar estratégias de enfrentamento. No Amazonas, a primeira associação de mulheres voltada para a luta por uma assistência ao parto e nascimento livre de violência teve início em 2014. Atualmente intitulada Humaniza Coletivo Feminista, a organização se constitui num canal de recebimento e encaminhamento de denúncias”.
As denúncias foram tratadas na dissertação com acréscimo de narrativas das vítimas que resultaram num texto potente capaz de contribuir para aprofundar o tema e orientar políticas públicas de enfrentamento e eliminação da violência obstétrica. No campo metodológico a autora priorizou “as abordagens qualitativas, sem desconsiderar os aspectos quantitativos, sob o aporte das teorias de gênero e seu contexto no âmbito das Ciências Sociais Aplicadas”.
A dissertação apresenta resultados concisos e bem fundamentados que revelaram “a existência e recorrência da violência obstétrica nas maternidades públicas e privadas de Manaus. Esta violência apresenta-se relacionada à posição social da mulher numa sociedade machista e patriarcal, com o agravante de que, no âmbito das instituições de saúde, as gestantes e puérperas encontram-se suscetíveis a intervenções não fundamentadas em evidências científicas, praticadas de forma arbitrária, privilegiando os interesses dos profissionais”, afirma a pesquisadora.
Por fim, a mestra em Serviço Social reconhece que “o Estado do Amazonas tem apresentado estratégias pioneiras no enfrentamento à violência obstétrica, com participação significativa do Humaniza Coletivo Feminista, que contribui para dar visibilidade ao tema”.
Os achados científicos da pesquisa apontam novas categorias de análise da temática e elementos mais que suficientes para novos estudos em nível de doutorado. De modo especial o tema da violência obstétrica praticada contra mulheres negras e indígenas que envolvem outros elementos/crimes como o racismo e o etnocentrismo por parte de profissionais da classe médica ligada à obstetrícia.
O enfrentamento a esse tipo de violência perpassa, necessariamente pela formação de novos profissionais, o que exige novas posturas e posicionamentos por parte da academia, e pela denúncia que exige das mulheres muita coragem e vigilância. Por outro lado, enquanto não se romper o pacto de silêncio em torno do tema e o corporativismo que blinda os/as algozes/criminosos/as, não é possível mudar o contexto de violência obstétrica.
A banca formada por mim e pela professora doutora Alice Alves Menezes Ponce de Leão, aprovou a dissertação com indicação de publicação imediata, dada a relevância do tema e a urgência de enfrentamento a esse tipo de violência tão covarde e tão recorrente que atinge as mulheres durante a gestão, o parto e o pós-parto, num momento de extrema vulnerabilidade das vítimas, muitas vezes sob efeito de medicação e anestesia.
Vida longa à nova mestra e sua orientadora em futuros estudos para continuar aprofundando o tema que exige coragem e audácia no campo científico. A dissertação em breve estará disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFAM (https://tede.ufam.edu.br/).
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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