Logo no início da manhã do dia 17 de dezembro, a equipe do Projeto de Pesquisa ‘Migração, Violência e Direitos Humanos em Roraima’ (Edital MCTI/CNPq – Universal, 2018) do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras (GEIFRON) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF), da Universidade Federal de Roraima (UFRR), foi recebida na Casa de Acolhida São José, em Pacaraima.
É uma casa simples localizada nas proximidades do abrigo Janokoida, dos migrantes indígenas. Mas, não tem nenhuma semelhança com os abrigos institucionais coordenados pela Operação Acolhida organizados a partir da securitização e da militarização da acolhida.
Duas migrantes estão na parte externa da casa e acolhem a equipe com enorme simpatia. Explicam que estão abrigadas na casa e que são as responsáveis pelo acolhimento da equipe de pesquisas. O convite para adentrar ao local sem pedir nenhuma documentação, sem exigir ‘ofício de autorização’ e nenhuma outra identificação chama a atenção da equipe que vai adentrando a casa com algumas frutas oferecidas para contribuir com o lanche da tarde.
Na varanda, um presépio ocupa toda a parede. Todos os personagens que recordam o nascimento do Menino Jesus foram confeccionados com material reciclável e se percebe diversas modalidades de arte e cultura em cada peça. Maria e José em tamanho quase real foram confeccionados com papel emborrachado e ganharam adereços nas cores das roupas e nos acessórios que remetem à Venezuela. Um caminho colorido acolhe o burrinho e as vaquinhas confeccionados com dobraduras de papel reciclável que ganhou novas cores e adaptações. Mas, os personagens do presépio que mais chamam a atenção são as ovelhinhas confeccionadas com rolinhos de crepon branco.
Logo na primeira sala após a entrada principal, cinco crianças estão ao redor de uma mesa com grande quantidade de material confeccionando mais ovelhinhas com papel crepon. O entusiasmo das crianças é contagiante. Não há nenhuma pessoa adulta no controle da atividade. Total autonomia das crianças. A maiorzinha informa que tem nove anos e lida com cola quente e com a tesoura com a maior destreza. As outras crianças vão preparando o material para a colagem. Conversam e cantam enquanto realizam a atividade e a alegria é contagiante ao terminar a ovelhinha. Todas vão ao presépio e escolhem o local onde colocarão a nova ovelhinha em forma arredondada. Fazem tudo como se fosse uma grande festa. A dimensão lúdica se faz muito presente em todos os locais das atividades.
Alguém da equipe pergunta se elas se recordam de alguma canção de natal e elas, em coro, cantam alegremente: “Con mi burrito sabanero, voy camino de Belén. Con mi burrito sabanero, voy camino de Belén. Si me ven, si me vem. Voy camino de Belén
Si me ven, si me ven. Voy camino de Belén”. E seguem a canção com diversas estrofes intercaladas com gargalhadas das crianças pequeninas que tentam acompanhar a música atentas a cada palavra.
A Casa de Acolhida São José é um projeto da Diocese de Roraima na paróquia Sagrado Coração de Jesus de Pacaraima, coordenado pela Irmãs de São José de Chambéry no Brasil. Contam com parcerias como o Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), Cáritas, Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), dentre outras instituições, todas da sociedade civil.
É uma casa alugada e mantida com recursos das instituições parceiras. Se destina exclusivamente ao acolhimento de mulheres com crianças pequenas. Por ocasião da visita, haviam 156 mulheres acolhidas. Todas com crianças. A mais nova com apenas um mês de vida está acompanhada pelo único homem adulto da casa que foi acolhido para cuidar da esposa que realizou parto com cesariana. Essa presença masculina é uma exceção que foi permitida somente pela situação da mãe nos primeiros dias de vida da bebê.
As mulheres abrigadas participam de todas as atividades da casa. O ambiente é organizado e acolhedor. Perguntada sobre como define o lugar, uma das moradoras resumiu que “esta casa é um lugar de esperança de tempos melhores”. A gestão da interiorização e os encaminhamentos para Boa Vista são constantes. Mas, enquanto permanecem na casa, à espera de encaminhamentos, as mulheres não param nem se entregam à depressão. Vão à luta, se organizam, se ajudam. É a espera de “esperançar” como dizia Paulo Freire em seu poema sobre a espera.
No meio da tarde chegou à casa a Irmã Ana Maria, coordenadora do projeto. Todas a acolhem com alegria. Ela fala com todas, brinca com as crianças e transmite segurança e acolhimento a todas as pessoas. Muito diferente da gestão dos abrigos coordenados pela Operação Acolhida.
A equipe de pesquisas pediu para conversar com algumas mulheres sobre suas trajetórias migratórias. Em pouco tempo, todas se organizaram no pátio aos fundos da casa. As crianças estão todas arrumadas como se fosse uma festa. As mães se ajudam entre todas com as crianças. Algumas trançam os cabelos das meninas enquanto esperam pela atividade. Logo começam a falar e o sentimento da casa como lugar de esperança é recorrente em todas as narrativas.
O entendimento da migração como alternativa de sobrevivência é outra questão recorrente nas narrativas. Da mesma forma, reclamam “o direito de migrar com segurança, dignidade e cidadania”. O nível de consciência crítica é percebido em todas as falas. Todas conhecem seus direitos e estão atentas a “todas as possibilidades de mudança a partir do deslocamento eminentemente forçado” afiurmam. As trajetórias de vida a partir das migrações são ricas em detalhes e poderiam compor livros e livros.
Bem próximo da Casa de Acolhida, encontra-se a Panaderia San José. Neste local quem acolhe a equipe de pesquisa é a Yerle, uma administradora de empresas que vive em Pacaraima há meses. Ela conta que o projeto da panaderia foi idealizado pelos migrantes junto com a Irmã Maria das Graças, outra integrante da Congregação de São José de Chambéry no Brasil. São 13 pessoas envolvidas no projeto de autosustentação. O mesmo clima de organização do espaço, de alegria e confiança se faz presente na panaderia.
A panaderia tem apenas três meses e já consegue fornecer pão de qualidade e menor preço aos migrantes. Além da variedade dos pães, o grupo investe na reprodução dos biscoitos que se come na Venezuela como uma forma de manter viva a memória das coisas boas, da infância e das festas de confraternização de final de ano.
Toda a equipe é formada por pessoas com formação e experiência no ramo da panificação. Nas narrativas enfatizam que “a panaderia é uma forma de reconhecer e valorizar o trabalho e a formação dos migrantes e não deixar que percam sua dignidade e cidadania”. Com orgulho oferecem o famoso ‘pan de jamón’ para degustação da equipe de pesquisa que logo se rende aos sabores e a beleza do pão em forma de trança recheado com azeitonas, bacon, queijo e presunto. O orgulho fica estampado no rosto de toda equipe de trabalho da panaderia.
Estas e outras experiências realizadas na visita de campo em Pacaraima revelam os caminhos alternativos de rompimento urgente e necessário com a atenção emergencial rumo às políticas públicas migratórias que devolvem aos migrantes sua dignidade e cidadania.
Mesmo na casa São José, que representa uma ação emergencial, há sinais de atitudes que apontam para a superação da questão emergencial. Enquanto esperam, as mulheres se organizam, confeccionam artesanatos, costuram as próprias roupas e das crianças, reciclam tecidos e materiais que se transformam em arte para ornamentar o espaço comunitário e utensílios de uso coletivo.
São experiências pequenas que indicam que o natal se faz realidade nos corações que acolhem e espalham esperança para tantos migrantes passarão o natal longe de seu país, de suas famílias, de seus lares! Cada gesto de acolhimento que devolve a dignidade e promove a criatividade dos migrantes são como as ovelhinhas confeccionadas pelas mãozinhas das crianças que festejam a chegada de cada uma no caminho verde e todo enfeitado de esperança. Viva o Natal dos Migrantes!!
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.