
Na última sexta-feira, dia 05 de agosto, a jovem estudante Jéssica Carvalho Guimarães defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso, na modalidade monografia, no Curso de História da Universidade Federal de Roraima, sob minha orientação. Intitulado Feminicídio no Estado de Roraima no contexto da pandemiade Covid-19, o TCC é resultado de intenso estudo teórico e pesquisa de campo. Participaram da banca examinadora do TCC a professora doutora Maria das Graças Santos Dias, do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima e o professor doutor Willas Dias da Costa, pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Territoriais na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.
No segundo capítulo da pesquisa, a historiadora trouxe para o debate dois temas importantes que contribuem para que o Estado de Roraima siga nas primeiras colocações no Mapa da Violência contra Mulheres e feminicídio em nível nacional, além de figurar como o Estado com maior índice de estupro e violência de vulneráveis/incapazes. A pesquisa de campo realizada pela estudante identificou o aumento da violência contra mulheres no período compreendido entre os anos de 2020 e início de 2022 e alta taxa de feminicídio vinculado ao garimpo ilegal em Roraima.
Nos últimos anos o Estado de Roraima permitiu a retomada do garimpo ilegal que tem trazido importantes prejuízos sociais em detrimento do enriquecimento ilícito de um reduzido grupo ligado ao crime organizado. A pesquisa identificou muitos conflitos internos e externos que envolvem o garimpo ilegal. As tensões se intensificaram com a pandemia da Covid-19 porque muitas comunidades indígenas, que escolheram o distanciamento voluntário para se protegerem da contaminação do vírus, foram invadidas por garimpeiros ilegais.
Os povos da Terra Yanomami, que vivem entre os estados do Amazonas e de Roraima, são os mais afetados por essa atividade ilegal. Além do desmatamento e da contaminação dos rios e dos peixes, a violência às mulheres e crianças é um agravante do garimpo ilegal. Os garimpeiros se aproveitam da ausência de fiscalização por parte do estado para fazer aliciamento de mulheres, e transmitir toda sorte de doenças.
Além disso, passaram a sofrer atitudes hostis por parte de garimpeiros que invadiram o território. De acordo com relatório divulgado pela Associação Hutukara, o garimpo cresceu 46% em 2021, a população Yanomami vive uma tragédia humanitária, principalmente as mulheres e crianças que são tratadas como objetos de escambo ao serem colocadas para atividades sexuais em troca de bebidas alcoólicas ou alimentos. (https://cir.org.br/site/2022/04/11/hutukara-lanca-novo-relatorio-com-dados-imagens-aereas-e-relatos-do-inferno-provocado-pela-invasao-do-garimpo-ilegal/).
De acordo com a pesquisadora, “a violência de gênero é agravada pelas atividades criminosas que ocorrem nos garimpos. Arrisco afirmar que o estado de violência imposto nos territórios dominados pelo garimpo se estende para toda a sociedade. A mesma violação aos direitos humanos vivenciada cotidianamente nos garimpo é reproduzida nas relações de gênero em toda a sociedade. Os mesmos homens embrutecidos nos garimpos são os parceiros, maridos, companheiros que agridem e matam as mulheres.
Para a pesquisadora, “a violência dos garimpos influencia toda a sociedade e contribui para a estigmatização da imagem da mulher vista como prostituta nos garimpos. É o reflexo de uma sociedade patriarcal, que permite o aumento dos casos de violência sexual contra mulheres e crianças indígenas nas áreas de garimpo sem nenhuma intervenção por parte do Estado que historicamente tem se posicionado favorável à atividade garimpeira em Roraima.
A pesquisadora identificou em sua pesquisa que “o feminicídio em áreas de garimpo durante a pandemia teve grande aumento, como pode ser verificado nos Boletins de Ocorrência e nos meios de comunicação. De acordo com uma reportagem do Jornal Folha de Boa Vista, no dia 30/11/21, em uma área de garimpo, localizada na vila Apiaú, uma cozinheira, identificada como Nathaly, migrante venezuelana de 23 anos, mãe de 3 filhos pequenos, que estava a poucos dias no garimpo foi morta a tiros de espingarda, após uma discussão com um garimpeiro que se recusava pagar suas despesas (https://folhabv.com.br/noticia/POLICIA/Ocorrencias/Mulher-e-morta-a-tiros-de-espingarda-em-garimpo-do-Apiau-/82061). O mesmo Jornal, no dia 23/07/2021, noticiou que a cozinheira Lindalva da conceição santos, 33 anos, foi morta a tiros em área de garimpo, localizado no município de Mucajaí https://folhabv.com.br/noticia/POLICIA/Ocorrencias/Cozinheira-e-morta-a-tiros-em-garimpo/78196. No dia 06/02/2021 outra mulher foi atingida por sete tiros em área de garimpo localizada no município de Amajarí, ao norte de Roraima (https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/02/06/mulher-e-atingida-por-sete-tiros-em-area-de-garimpo-ao-norte-de-roraima.ghtml)”.
A pesquisadora informa que “esses são apenas alguns feminicídios ocorridos em área de garimpo ilegal noticiados nas mídias locais. A subnotificação de feminicídios é recorrente nos garimpos. E o mais grave é que absolutamente todos os casos ficaram impunes. Nenhum garimpeiro foi preso por feminicídio. Diante disso, essa pesquisa exploratória conclui que a impunidade encoraja a continuidade da violência contra as mulheres nos garimpos e em toda a sociedade roraimense”.
Para a pesquisadora “além do garimpo que reproduz a naturalização patriarcal do feminicídio, outro agravante é a impunidade de figuras públicas do Estado de Roraima, que exercem forte influência sobre a sociedade, que praticam violência contra mulheres em exercício político e não recebem nenhuma punição.
Um caso que teve grande notoriedade no Estado foi um episódio de violência de gênero que teve como personagem dois importantes políticos do estado: o presidente da assembleia legislativa de Roraima, deputado Jalser Renier e a prefeita de Boa Vista, Teresa Surita. A então prefeita foi agredida publicamente durante uma entrevista numa rádio da cidade. Na ocasião, além das ofensas verbais, ela foi interrompida pelo parlamentar que lhe deu um tapa na cara. Apesar da grande repercussão não houve nenhuma punição ao parlamentar que cometeu crime político com a violência de gênero (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2018/10/deputado-invade-radio-e-agride-prefeita-de-boa-vista-durante-entrevista.shtml)”.
As conclusões da pesquisa apontam que “esses e muitos outros crimes de violência contra mulheres praticados por agente públicos que não sofrem nenhum tipo de punição, representam um contexto de naturalização da violência de gênero. Isso tem feito com que o Estado permaneça no topo da classificação da violência contra mulheres e feminicídio desde 2011. Isso faz com que o Estado seja um lugar perigoso para as mulheres que nasceram nesse território, para turistas, e principalmente, para mulheres migrantes, pobres, indígenas e negras”.
A pesquisa aponta importantes achados teóricos que precisam ser aprofundados em outros estudos. Entretanto, a conclusão de que uma sociedade fundada na garimpagem representa o que há de mais arcaico e neocolonial e legitima a violência contra as mulheres e o feminicídio, é uma verdadeira contribuição para a ciência e um alerta para as instituições que atuam em defesa da vida e dos direitos sociais.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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