Nesta terceira reportagem da séria “Saneamento: o privado financiado pelo público”, o ATUAL mostra como o mesmo processo para construir o Proama (estação de captação e tratamento de água) se repete agora na construção de uma estação de tratamento de esgoto. O investimento público será feito sem retorno ao Estado, que arcará com o pagamento do empréstimo feito junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). A promessa é de que seja criado um fundo para reinvestir o “lucro” da operação da Estação de tratamento em novas obras de saneamento básico. O contrato de concessão de água e esgoto de Manaus, no entanto, prevê que esses investimentos sejam feitos pela empresa concessionária.
Por Felipe Campinas, da Redação
MANAUS – Após investir R$ 365 milhões na estrutura do Proama (Programa Águas para Manaus) para levar água aos bairros das zonas leste e norte de Manaus e, posteriormente, entregá-la ao setor privado, o Governo do Amazonas está investindo mais R$ 44,4 milhões para construir a ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) do Prosamim, no bairro Educandos, zona sul da capital, e também repassá-la à concessionária.
A estrutura da nova estação está sendo bancada com dinheiro público, sendo que 75% do montante advém de empréstimo do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e 25% são recursos do Tesouro estadual.
O governo estadual já anunciou que depois de concluída, a ETE será repassada para a Prefeitura de Manaus, que vai entregar a operação do sistema à concessionária Águas de Manaus, controlada pelo Grupo Aegea.
O processo de concessão da ETE do Prosamim ocorre 11 anos após o Governo do Amazonas investir pesado para construir o Complexo Proama e firmar com a Prefeitura de Manaus um consórcio para gestão associada dos serviços.
Como foi mostrado na segunda reportagem da série “Saneamento: o privado financiado pelo público”, o Proama foi entregue a concessionária, que opera o complexo sem pagar nada ao governo.
Privatizado
Em Manaus, os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário são concedidos à iniciativa privada desde 2000. A privatização foi viabilizada com a promessa de que a cobertura de água e esgoto seria ampliada com a participação das empresas nesse setor, mas, 19 anos após a concessão, Manaus ainda registra números baixos em relação a cobertura de esgoto.
A primeira reportagem da série mostra que em 19 anos de concessão à iniciativa privada, a coleta de esgoto em Manaus chegou a apenas 19,90% das casas, segundo pesquisa publicada pelo Instituto Trata Brasil na quinta-feira, 27.
Fábio Alho, presidente da Ageman (Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados de Manaus), órgão que fiscaliza o contrato com a concessionária, afirma que a cobertura chega a 22%.
O Instituto Trata Brasil também apontou que o abastecimento de água chegou a 97,50% em 2019, sendo Manaus a capital brasileira que mais ampliou seus níveis de atendimento em água, apresentando um crescimento de aproximadamente 12 pontos percentuais entre 2015 e 2019 – em 2015, a cobertura era de 85,42%.
A Ageman afirma que 95% das casas têm água potável nas torneiras na capital amazonense.
Devido ao não cumprimento das metas, a Prefeitura de Manaus chegou a realizar repactuação do contrato de concessão em 2008 para viabilizar o investimento de dinheiro público no serviço de água. O terceiro aditivo estabeleceu que caberia ao Estado do Amazonas “realizar os investimentos para consolidação do abastecimento de água de Manaus através do Sistema Ponta das Lajes”.
No caso da concessão da ETE do Prosamim, as tratativas estão sendo encabeçadas pela UGPE (Unidade Gestora de Projetos Especiais), órgão responsável pelo Prosamim (Projeto Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus). O projeto da nova estação, no entanto, tem características semelhantes ao projeto do Proama, com a previsão de criação de um fundo de saneamento para “reinvestimento”.
Como a Águas de Manaus, controlada pelo grupo Aegea, detém a exclusividade na prestação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário em Manaus, conforme o contrato de concessão firmado em 2000, a operação do ETE do Prosamim será repassada para a concessionária sem licitação.
Segundo o governo do Amazonas, a empresa apenas vai operar o sistema, sem obter lucro.
No entanto, os consumidores atendidos com coleta e tratamento de esgoto em Manaus pagam 100% do valor do consumo de água pelo esgoto, se estiverem ligados a um dos sistemas de coleta. Não será diferente para os consumidores ligados à ETE do Prosamim.
“Integralizar”
Em entrevista ao ATUAL, o subcoordenador de relacionamento institucional da UGPE, Francisco Soares Filho, afirmou que o ETE do Prosamim “é parte de um sistema maior” e a operação dele pelo grupo Aegea é necessária para “integralizar” a estrutura de esgotamento sanitário em Manaus para, assim, “colocá-la para funcionar”. “É para integralizar o sistema, para ficar Prosamim 1, 2 e 3 e a ETE repassada”, disse.
“O Estado do Amazonas, por meio de um financiamento internacional, faz a execução de obras na área de saneamento, como rede coletora, estações elevatórias e a própria estação de tratamento de esgoto. Uma vez concluída essas obras daqui do Prosamim, elas serão repassadas ao município, que é o titular do serviço, que repassará de imediato para a empresa Águas de Manaus, que é a concessória”, completou Soares Filho.
O termo de convênio irá prever que a parcela remanescente, que é o equivalente a diferença entre a operação tarifária e a remuneração da concessionaria, deverá ser transferida para o fundo de saneamento, que será criado através de lei estadual. O subcoordenador afirmou que esse dinheiro não será usado para pagar o empréstimo feito pelo governo, mas para expandir o sistema, o que deveria partir da concessionária.
“No caso do ETA do Prosamim, essa exploração vai ter um retorno: a parcela remanescente, que é a arrecadação tarifária menos as despesas que a concessionária detém para prestar os serviços. Essa diferença vem para o fundo, que é para financiar a ampliação do sistema que já foi implantado. Mas quem vai definir essas diretrizes e onde vai ser feito o reinvestimento é o próprio poder público”, afirmou Soares Filho.
O subcoordenador afirma que o projeto de lei que criará o fundo de saneamento só será enviado pelo Governo do Amazonas à Assembleia Legislativa do Amazonas depois que a concessionária começar a operacionalizar, no segundo semestre deste ano. Soares Filho disse que tem até outubro deste ano para construir e assinar o termo de convênio para poder executá-lo.
O Governo do Amazonas estima que a nova estação atenda cerca de 190 mil pessoas, com capacidade para tratar 300 litros por segundo (l/s) de esgoto. A ETE do Prosamim faz parte do sistema de esgotamento sanitário construído na bacia do São Raimundo, que tem 31 quilômetros de redes de coleta de esgoto e seis estações elevatórias, distribuídas seis bairros.
‘Reinvestimento’
O projeto da UGPE para a ETE do Prosamim mantém a regalia à concessionária, pois prevê que a ampliação do sistema será feito pelos próprios usuários do sistema, que pagarão a tarifa pelo uso do serviço e o lucro da prestação desse serviço será revestido ao fundo de saneamento para ampliar a estrutura do esgotamento sanitário da capital amazonense nos próximos anos.
Francisco Soares Filho cita que o contrato de concessão entre a prefeitura e a Águas de Manaus para prestação de serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário já existe. Com a construção da estação do Prosamim, será necessário a aprovação de um convênio financeiro, em que será previsto o repasse da parcela remanescente para o fundo de saneamento.
“Eu quero retirar uma receita que é para eu reinvestir no sistema ou recuperar o valor que eu já investi. Aqui você percebe que eu falo de um fundo de saneamento. Esse fundo de saneamento que vai ser constituído – eu já tenho a minuta dele – é exatamente para o recebimento de valores devidos pela concessionária. Quando ela começar a explorar ela vai arrecadar uma tarifa”, afirmou Soares Filho.
De acordo com o subcoordenador, o repasse ao fundo de saneamento é uma exigência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). “Ele disse tá bom, a gente vai financiar, vocês vão construir, mas não vão repassar para a empresa privada para ela explorar e ganhar dinheiro com investimento de vocês. Ela tem que devolver parte disso. Durante um tempo esse recurso irá para esse fundo”, disse Soares Filho.
Questionado pela reportagem sobre o tempo e o percentual de recurso que será repassado ao fundo, o subcoordenador afirmou que o termo de convênio financeiro ainda não está concluído e que existe apenas uma minuta. “Eu vou submeter ele à própria concessionária, à Ageman, ao município e à Procuradoria-Geral do Estado. E aqui nós vamos definir essa informação”, afirmou Soares Filho.
“A gente vai fazer o cálculo para ver quanto foi investido e quanto tempo a gente consegue recuperar o que foi investido. A ideia não é trazer o dinheiro de volta. A ideia é reinvestir no sistema, é ampliar, é que ele seja sustentável, que eu precise menos possível fazer financiamentos para ampliação desse sistema que foi implantado”, completou Soares Filho.
De acordo com o subcoordenador, ainda não há uma definição de qual esfera – Governo do Amazonas ou Prefeitura de Manaus – irá controlar o fundo de saneamento. “Vai ser dentro da esfera de poder pública. Tem as duas alternativas, mas é uma decisão dos gestores. Esse fundo vai ser estadual ou municipal. Hoje ele está desenhado para ser estadual, mas eu tenho estudo dele para ser municipal também”, disse Sores Filho.
Caixa separado
Como a concessionária começará a operar antes do convênio financeiro, o convênio de execução de obras prevê que “até que seja assinado o convênio financeiro, a arrecadação decorrente da operacionalização das obras e instalação já recebida parcial ou totalmente pela concessionária até a celebração deste instrumento, bem como as despesas a ela associadas, terão os registros contábeis em separado”.
“Não significa que ela está operando e esse dinheiro está indo só para ela, que ela está misturando com o que ela já estava operando antes. Essas obras têm que ter o registro em separado e ela tem que demonstrar trimestralmente o que está tendo de arrecadação, por conta do objeto do repasse. Mesmo que eu ainda não tenha assinado o convênio, mas está registrado o valor (recebido)”, disse Soares Filho
Investimento social
O subcoordenador da UPGE afirmou que a aplicação de dinheiro público em estrutura que será operacionalizada pelo setor privado é permitida pela Constituição Federal quando se trata de saneamento básico. “É de interesse maior que nós tenhamos a cobertura para o máximo possível da população. O quanto antes”, disse Soares Filho, reforçando que haverá revisão de contrato todos os anos.
“Na Constituição Federal está dizendo: essa é uma competência comum da União, do Estado e do Município”, disse Francisco Soares Filho.
Para Soares Filho, a concessionária não conseguiria sozinha atender a meta criada no Marco Regulatório do Saneamento de que até 2033 Manaus tenha 90% de cobertura de coleta e tratamento de esgoto e 99% de abastecimento de água.
“É uma contribuição do estado. Nem o município teria essa condição de sozinho atender a cidade de Manaus inteira”, disse o subcoordenador.
No entanto, como já foi mostrado na primeira reportagem da série “Saneamento: o privado financiado pelo público”, o investimento para “manutenção dos sistemas de abastecimento de água e esgoto” e para a “qualidade da prestação dos serviços” deveria partir da concessionária, conforme prevê a Cláusula 13ª do contrato de concessão, firmado em 2000:
“Constituem encargos e responsabilidades da concessionária (…) captar, gerir e aplicar os recursos financeiros necessários à prestação dos serviços, realizando os investimentos tanto para a execução dos planos contidos nos Anexos (investimentos e metas) para a manutenção dos sistemas de abastecimento de água e esgoto sanitário, bem como para qualidade da prestação dos serviços”, diz trecho do contrato.
Leia a quarta reportagem da série: