
Nesta segunda reportagem da séria “Saneamento: o privado financiado pelo público”, o ATUAL mostra como políticos e grupos empresariais constroem um ambiente para o poder público fazer aquilo que deveria ser feito pela empresa privada, após privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da capital amazonense. O caso do Proama é emblemático. Como a empresa não cumpriu o que previa o contrato, o governo foi “obrigado” a investir para construir o complexo e entregar à concessionária.

Por Felipe Campinas, da Redação
MANAUS – Com custo de R$ 365 milhões, o Proama (Programa Águas para Manaus) foi um projeto bancado pelo Governo do Amazonas para levar água aos bairros das zonas leste e norte da capital diante da baixa cobertura do serviço.
Com uma licitação suspeita, o complexo foi entregue à Companhia de Saneamento do Norte em 2013, quando a concessionária Manaus Ambiental passou a usar a estrutura para vender água tratada por atacado.
Atualmente, o Proama é operado pela Águas de Manaus, controlada pelo grupo Aegea, que também tem a concessão dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário na capital até 2045. A Aegea é responsável por levar água até as casas dos consumidores, mas, no caso das zonas leste e norte, antes de distribuir, ela compra a água tratada por atacado do consórcio Proama, que é operado por ela mesma.
O Proama é exemplo de que, em Manaus, apesar de os serviços de saneamento básico serem concedidos à iniciativa privada desde 2000, o Poder Público teve que investir milhões de reais para ampliar a cobertura de água tratada e coleta de esgoto.
Esta matéria é a segunda de uma série de reportagens sobre investimentos no saneamento básico feitos com dinheiro público em estruturas operadas pelo setor privado. Para produzi-la, o ATUAL teve acesso a documentos que ainda não haviam sido publicados e conversou com Sérgio Ramos Elias, Francisco Soares Filho e Fábio Augusto Alho da Costa.
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Sérgio alegou que a aplicação de dinheiro do cofre estadual no projeto foi um “investimento social” e que, apesar de o contrato prever destinação de parte do lucro para quitação do empréstimo feito pelo Governo do Amazonas para construir o complexo Proama, o valor nunca chegou a ser enviado porque a empresa nunca registrou faturamento suficiente.
Em relação à licitação suspeita do Proama, Sérgio Elias disse que quatro empresas haviam participado da concorrência. No entanto, a reportagem teve acesso à Ata de julgamento da concorrência, que aponta que a licitação teve participação de apenas uma empresa, que apresentou proposta atendendo todas as especificações do certame.
Para entender a história do Proama é necessário remontar ao ano 2000, quando a Manaus Saneamento, subsidiária da Cosama (Companhia de Saneamento do Amazonas), que realizava o abastecimento de água na capital, foi vendida através de leilão. O processo de privatização é relatado por Sandoval Rocha, que é articulista do ATUAL, em estudo publicado em 2019.
Privatização
Rocha afirma que ao longo da década de 1990 houve modernização do sistema, mas as obras não foram suficientes para resolver os problemas de infraestrutura. Segundo ele, a partir de 1995, houve um “nítido processo de sucateamento da Cosama”, com a redução de produtividade e a quantidade de trabalhadores, o que gerou cenário favorável para que políticos defendessem a privatização.
Em 2000, os serviços de água e esgoto de Manaus foram transferidos ao grupo francês Suez – Lyonnaise des Eaux, que passou a operar através da concessionária Águas do Amazonas. Em 2006, a concessionária foi vendida para o grupo Solví, que assumiu os serviços com inúmeros benefícios, entre eles o primeiro termo aditivo ao contrato de concessão, realizado no ano seguinte.
O pesquisador relata que cinco anos depois a CMM (Câmara Municipal de Manaus) instaurou a CPI da Águas do Amazonas para analisar o contrato de concessão dos serviços de água e esgoto, tendo como foco principal investigar o desabastecimento da cidade, especialmente nas zonas Norte e Leste, onde a precariedade dos serviços era mais evidente.
A comissão diagnosticou que a situação do abastecimento de água era calamitosa. “Cerca de 500.000 habitantes estão totalmente sem água ou com abastecimento precário inferior a 4 horas por dia. Em várias áreas, surgem soluções inadequadas e que comprometem a qualidade da pouca área servida”, diz trecho do relatório da CPI.
Os vereadores também relataram que “praticamente 100% das instalações relacionadas ao esgoto estão paralisadas, causando uma situação de calamidade pública, com gravíssimas consequências ambientais e sanitárias”. Segundo eles, os dejetos estavam sendo jogados nos igarapés, sem o tratamento adequado.
“Surtos de doenças de veiculação hídrica como dengue, hepatite e verminoses se proliferam. As estruturas existentes estão obsoletas, sem condições de prestar um serviço adequado à população. Há falta de investimento nas estações, ou os investimentos estão sendo efetuados muito lentamente”, diz outro trecho do relatório.
De acordo com Rocha, mesmo diante do descumprimento das metas e ignorando as recomendações da CPI, o ex-prefeito Serafim Corrêa assinou a repactuação do contrato de concessão. O documento autorizou a atuação do Poder Público de modo “complementar e eventual, direto ou indireto, isolado ou em parceria com a União e o Estado do Amazonas”.
As alterações começaram a viabilizar o investimento do Governo do Amazonas na construção do complexo de produção de água da Ponta das Lajes, na zona leste de Manaus.
Em 2008, Serafim Corrêa assinou o terceiro termo aditivo ao contrato, que estabeleceu que caberia ao Estado do Amazonas “realizar os investimentos para consolidação do abastecimento de água de Manaus através do Sistema Ponta das Lajes, conforme Termo de Compromisso firmado entre o Estado do Amazonas e o Poder Concedente”.
Em 2012, na gestão de Amazonino Mendes na Prefeitura de Manaus, o Grupo Solví vendeu 50,25% das ações da Companhia de Saneamento do Norte, que controlava a concessionária Águas do Amazonas, para o grupo Águas do Brasil. Com o novo termo aditivo, o Grupo Águas do Brasil, através da concessionária Manaus Ambiental, assumiu o compromisso de universalizar o abastecimento de água na cidade e garantir a excelência na prestação dos serviços à população.
De acordo com Rocha, o novo termo aditivo celebrado em 2012 estabeleceu que o valor cobrado pelo serviço de esgotamento sanitário equivalia a 100% do valor cobrado pelo serviço de água. A concessionária se comprometeu em investir R$ 3,4 bilhões no saneamento básico de Manaus, planejando ampliar a cobertura de abastecimento de água para 98% até o ano de 2016 e implantar 90% do tratamento de esgoto da cidade até 2040.
Em 2018, o Grupo Aegea comprou todas as ações da Companhia de Saneamento do Norte, que detinha 100% do capital social da Manaus Ambiental e da Rio Negro Ambiental, que já atuava na capital amazonense desde 2016 operando o Proama. A entrada da Rio Negro Saneamento em Manaus através do Proama ocorreu em uma licitação suspeita, em que a empresa foi a única que participou, fato que também será contado adiante.

Concorrência sem concorrentes
A história do Proama começa em 2008, quando o Governo do Amazonas e a Prefeitura de Manaus celebraram um termo de compromisso para iniciar a operação do sistema de captação e tratamento de água da Ponta das Lajes. Para a obra de R$ 365 milhões, o governo federal concedeu empréstimo de R$ 232,7 milhões, que seriam pagos pelo Estado em 20 anos, e o restante era contrapartida do governo estadual.
A obra do Proama ficou pronta em 2010, mas empacou por dois anos devido a conflitos políticos entre o ex-prefeito Amazonino Mendes e o ex-governador Omar Aziz. Somente em 2013 o consórcio Proama e a Cosama (Companhia de Saneamento do Amazonas) firmaram o Contrato de Programa nº 001/2013, que tinha por objeto a concessão para operação e manutenção do complexo da zona leste até 2045.
Entretanto, Sérgio Elias afirmou que a Cosama foi contratada para operar o Proama temporariamente, até a realização da licitação para outorga dos serviços de fornecimento de água tratada no atacado. “Contratamos a Cosama à época para operar o Proama até que se fizesse o edital de privatização, as condições de privatização”, disse o ex-diretor-executivo do Proama.
“O governo do estado não iria mais investir lá, nem a prefeitura. Então, a Águas de Manaus passou a investir em todos os insumos. A Cosama entrava com os funcionários. A Cosama via todas as despesas que ela tinha na operação e mais a venda de água e cobrava da Águas de Manaus. E assim a Cosama atuou por dois anos e meio até que se preparasse o edital de privatização e se privatizasse o Proama”, disse Elias.
Em 2013, ano em que começou a operar o Proama, a Cosama firmou contrato com a Manaus Ambiental, que iniciava sua atuação no abastecimento de água, para fornecer água tratada por atacado. No entanto, em abril de 2016, ocorreu a rescisão antecipada do contrato pelo consórcio e a gestão do complexo foi repassada para a Rio Negro Ambiental através da Concorrência Pública nº 001/2016.
Sérgio Elias disse que quatro empresas participaram da concorrência, cujos registros são escassos e há suspeita de que tenha ocorrido às escuras. “Salvo engano quatro empresas (participaram). Foi uma licitação nacional. A que ofereceu o menor preço de venda de produção foi a Rio Negro Ambiental, que interessava. Era uma empresa vendendo para outra do mesmo grupo”, disse o ex-diretor-executivo do Proama.
No entanto, a ata de resultado de julgamento de documentação, abertura e julgamento de propostas de preços, datada de 17 de fevereiro de 2016, que o ATUAL teve acesso, aponta que a Concorrência nº 001/2016 teve participação de apenas uma empresa, a Companhia de Saneamento do Norte, controladora da Rio Negro Ambiental e da Manaus Ambiental. Sem concorrência, a empresa “venceu” a licitação para operar o Proama.
A concorrência, cujo objetivo era abrir o serviço para o mercado propor o valor mais baixo da tarifa, recebeu uma única proposta de preço. Conforme o documento, a Companhia de Saneamento do Norte propôs tarifa de R$ 0,482 para o metro cúbico de água tratada fornecida por atacado, e, por unanimidade, a comissão de licitação da Prefeitura de Manaus considerou a empresa classificada.
A ata também aponta que a empresa atendeu as especificações da proposta. “Assim, levando em conta as especificações da proposta e o preço ofertado pela licitante, ainda o critério de julgamento adotado para a licitação, que é de menor valor de tarifa, a comissão por unanimidade de seus membros resolveu considerar classificada a licitante: Companhia de Saneamento do Norte”, diz trecho do documento.
Em outra parte da ata, consta que a comissão “dispensou as fases recursais quanto ao resultado de julgamento da proposta de preços, por se tratar de apenas uma licitante participante do certame”.
No dia 1º de março de 2016, foi publicado no diário oficial do município o Termo de Adjudicação e Homologação da Concorrência Pública nº 001/2016 declarando a Companhia de Saneamento do Norte vencedora da licitação.
Na prática, a Companhia de Saneamento do Norte ficou responsável por operar o Proama, produzindo e fornecendo água tratada, e por comprar dela mesma a água para revender na zona leste.
Para Sérgio Elias, a operação do Proama e dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus pelo mesmo grupo empresarial “foi bom” para o Estado e para a empresa.
No processo de transferência, a Cosama realizou acordo com a Rio Negro Ambiental e o consórcio Proama para que os insumos estocados e os bens imobilizados permanecessem no local para evitar descontinuidade dos serviços e para que fosse realizado um levantamento para ressarcimento da Cosama. No entanto, segundo a Cosama, a Rio Negro Ambiental dificultou o pagamento da indenização.
Em 2019, após tentativas frustradas de negociação amigável com a Rio Negro Ambiental, a Cosama acionou a Justiça do Amazonas para obter indenização de R$ 7,7 milhões por danos materiais. Em setembro de 2020, a juíza Naira Neila Batista de Oliveira Norte, da 4ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho, condenou a Rio Negro Ambiental a pagar indenização de R$ 6,7 milhões à Cosama.
Água no atacado
Com a “vitória” da Companhia de Saneamento do Norte na Concorrência nº 001/2016, a Rio Negro Ambiental começou a operar o Proama em 2016, vendendo água no atacado para a Manaus Ambiental, empresa do mesmo grupo. A Manaus Ambiental, responsável pela distribuição na capital, revendia a água tratada os consumidores com autorização pelo contrato de concessão de 2000.
O contrato de operação do Proama previa que 60% do lucro com o fornecimento do serviço seria repassado para o Governo do Estado pagar o financiamento feito junto à Caixa Econômica Federal. Além disso, 40% seria para a concessionária e 10% para um fundo de saneamento, que seria aplicado em serviços de saneamento básico na capital amazonense.
Entretanto, segundo Sérgio Elias, a concessionária nunca chegou a enviar valores para o estado e município porque o contrato previa que o repasse ocorreria apenas quando a empresa registrasse resultado positivo na operação e até hoje a empresa não registrou lucro. O ex-diretor do Proama associa a falta de lucro às inadimplências de consumidores.
“A Águas de Manaus compra por X no atacado e vende no varejo na zona leste por XX. Essa diferença de X ela usa para pagar toda a operação do Proama, incluindo o pagamento dos funcionários. Se o resultado for positivo, ela fica com 30% e joga 70% para o consórcio. Só que de lá para cá, como a inadimplência da zona leste é uma das maiores que existe, esse número aqui nunca chegou positivo”, afirmou Elias.
A reportagem solicitou da empresa Águas de Manaus e da Ageman (Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados de Manaus), órgão da prefeitura que fiscaliza o contrato com a concessionária, a lista com investimentos e lucros, mas até a publicação desta matéria nenhuma resposta foi enviada.
Investimento social
Ao ser questionado sobre a falta de repasses para o pagamento do empréstimo feito pelo Governo do Amazonas, Sérgio Elias disse que a aplicação de dinheiro público no complexo foi um “investimento social”.
“Apesar de ter sido um financiamento oneroso para o estado, foi mais a fundo social, pois naquela altura nós tínhamos praticamente uma situação de emergência de falta de água na zona leste”, disse Ramos.
“Foi um investimento social. Se daí desse investimento tiver retorno para o governo do estado, excelente. E eu acredito que vai ter. Não tem por que não ter. A partir do momento em que se acompanhar direitinho e todo esse sistema tiver fechado, com certeza vai começar a dar lucro. E esse financiamento do governo do estado é longo”, completou o ex-diretor-executivo do Proama.
A reportagem também questionou Sérgio se o consórcio havia previsto a possibilidade de a concessão não gerar lucros e ele afirmou que “se sabia que nos três ou quatro primeiros anos dificilmente” geraria lucro por conta dos investimentos que seriam feitos. Ele citou a pandemia de Covid-19 afetou os trabalhos da empresa e afirmou que “possivelmente em 2022” o Proama já comece a ter resultados positivos.
“Se você lembrar, na época em que não existia o Proama, tudo lá era abastecido por poço. Veio o Proama. Foram feitos cinco grandes reservatórios para abastecer. Toda essa rede teve que mudar. Grande parte dessa rede teve que ser trocada. Teve que refazer praticamente todas as ligações. Todas as ligações não foram cobradas. Isso fazia parte do contrato da concessão”, disse Elias.
“O usuário não pagou nem o hidrômetro. Foram todas ligações grátis por conta da operação do Proama. Então, esse sistema de você fazer isso para separar, abastecimento por reservatório e por bomba que todos tem, parte alta e baixa, demandou investimento muito alto, investimento que não terminou por causa do número excessivo de gatos que existe”, completou Sérgio.
O ex-diretor-executivo do Proama disse que todos os anos é feito uma auditoria na operação da Águas de Manaus. “Uma empresa idônea, fora do contexto, é contratada para fazer a auditoria dessa operação. E, nessa auditoria, até então nunca se verificou resultados positivos”, disse Elias.
Sérgio Elias associou os resultados negativos a ligações irregulares, principalmente na zona leste de Manaus.
“Esses resultados positivos só vão se verificar quando terminarem todos os serviços que têm que ser feitos na zona leste. No caso, acabar com a inadimplência. Hoje tem em torno de 20 mil ligações que estão fora do sistema, que são ‘gatos’. Isso implica diretamente nessa operação de ressarcimento”, disse.
Enquanto a concessionária não registra lucro, o Governo do Amazonas continua a pagar o empréstimo de R$ 232,7 milhões feito com a Caixa Econômica Federal para a construção da estrutura do Proama.
De acordo com a Sefaz (Secretaria de Estado de Fazenda do Amazonas), o Estado já pagou R$ 71,8 milhões e ainda falta pagar R$ 160,9 milhões, que deverão ser quitados no prazo de 10 anos.
Leia a terceira reportagem da série: