Por Felipe Campinas, da Redação
MANAUS – Desespero, expectativa e medo resumem o relato da editora de quadrinhos Sâmela Hidalgo, de 28 anos, que viveu momentos tensos para salvar a vida da avó, Maria de Nazareth da Silva, de 86 anos, e da tia, Jaqueline Araújo da Cruz, de 50 anos, em janeiro de 2021. Ambas enfrentaram quadro grave por complicações da Covid no momento em que os hospitais de Manaus estavam lotados e faltava oxigênio para os pacientes.
Diante da falta de vagas em quatro hospitais públicos e privados, os familiares de Maria e Jaqueline decidiram montar uma “mini UTI” em casa, com acompanhamento de profissionais da Saúde particulares. No entanto, em razão da alta do consumo do oxigênio em Manaus, o insumo se tornou precioso e Sâmela e os primos entraram na disputa pelo produto com outras famílias que também tratavam pacientes em casa naquele momento.
O dia 14 de janeiro de 2021, o pico da segunda onda do novo coronavírus no Amazonas, é chamado por Sâmela de “inferno na terra”. A alta no número de mortos por Covid no estado, a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, a disputa pelo insumo e o testemunho do desespero de dezenas de pessoas que perderam familiares porque não conseguiram recarregar as balas de oxigênio a tempo explicam o porquê.
“No dia 12, começou o desespero. Dia 14 foi o pico. A gente já não conseguia encontrar oxigênio para encher as duas balas de oxigênio. Entramos em desespero. (…) Para conseguir oxigênio, os meus primos ficaram na fila (na empresa Nitron) das três da manhã (do dia 13) e só conseguiram recarregar oxigênio às oito da noite do dia seguinte (dia 14). Foram mais de 24 horas na fila. Foi desesperador”, disse a editora de quadrinhos.
Para Sâmela, a frustração por não ter conseguido vagas em quatro hospitais públicos e privados para a avó e para a tia se transformou em alívio diante da oportunidade que ela teve de acompanhar de perto o tratamento delas feito com auxílio de profissionais da Saúde. A “mini UTI” montada em casa ajudou a salvar a vida de Maria e Jaqueline, mas a manutenção dela custou caro para o bolso e para a saúde mental dos familiares.
“Hoje em dia eu percebo que se a gente tivesse conseguido internar elas duas no hospital, principalmente no Hospital 28 de agosto… porque nem os hospitais tinham oxigênio naquela época. Estava uma loucura só. A gente ter trazido elas pra casa, de alguma forma, salvou a vida delas, tentando fazer os cuidados aqui em casa, tendo o oxigênio que a gente conseguia”, disse a editora de quadrinhos.
Dados da FVS-AM (Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas) indicam que em janeiro de 2021 foram registradas 3.629 mortes por complicações causadas pela Covid-19 no Amazonas, sendo 2.892 na capital e 737 no interior do estado.
Os números tiveram forte influência da crise de oxigênio, provocada pela falta do insumo nos hospitais da rede estadual, que colapsou no dia 14 de janeiro de 2021.
O médico infectologista Nelson Barbosa foi um dos responsáveis pelo atendimento de pacientes no Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto na crise de oxigênio em Manaus. Ele testemunhou a alta demanda do produto na unidade hospitalar naquele momento e conta que os profissionais tiveram que adotar uma técnica chamada pronação para regular o consumo do insumo entre os pacientes que estavam na UTI.
“Nós tivemos que fazer uma manobra nos pacientes chamada prona, que é colocar eles de barriga pra baixo, para que o consumo de oxigênio seja menor. Nas UTIs nós não tivemos morte por falta de oxigênio, mas nos outros locais do hospital, sim, das pessoas que chegavam precisando de oxigênio. Várias pessoas morreram”, diz Barbosa, ao relembrar a busca de pacientes por atendimento no Hospital 28 de Agosto.
De acordo com o médico, o mesmo cilindro de oxigênio, às vezes, era compartilhado entre três pacientes. “Muitas vezes nós tivemos que instalar duas ou três saídas de oxigênio para poder oferecer aos pacientes. Só que quando chegavam mais pacientes, os colegas ficavam alternando. Aqueles que estavam necessitando muito mais ficavam usando o ponto de oxigênio”, lembra Barbosa.
Relaxamento
Especialistas afirmam que a alta no número de infectados no Amazonas em janeiro se deu, principalmente, em razão das eleições municipais realizadas em novembro e das festas de fim de ano, nas quais o uso de máscara e álcool em gel e o distanciamento social foram deixados de lado pela população. A expectativa pela chegada da vacina e o esgotamento com as medidas não-farmacológicas também contribuíram com o espalhamento do vírus.
Em dezembro de 2020, o governo estadual já havia identificado a alta de casos e decidiu fechar o comércio pelo prazo de 15 dias a partir do dia 26 daquele mês. A medida, no entanto, revoltou empresários e trabalhadores do setor, que foram às ruas do Centro pela manhã e tomaram a Alameda Cosme Ferreira pela parte da tarde em protesto contra o decreto estadual.
O governador Wilson Lima cedeu à pressão e, no dia 27 de dezembro, decidiu revogar o decreto que fechava o comércio. Dois dias depois, Manaus registrou 1.447 novos casos de Covid, e, no dia 30, 1.369, o que levou o MP-AM (Ministério Público do Amazonas) a pedir o fechamento do comércio na Justiça do Amazonas.
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O número de mortos em Manaus começou a subir no início de janeiro de 2021, alcançando 52 sepultamentos no dia 1º, 76 no dia seguinte e 72 no dia 3. No terceiro dia de janeiro havia 163 pessoas internadas nos hospitais públicos e privados do estado amazonense, número que se aproximou do pico registrado em 4 de maio de 2020 (168 hospitalizados).
No dia 4 de janeiro de 2021, a então presidente da FVS, Rosemary Pinto – que morreu por complicações da Covid no dia 22 daquele mês –, anunciou que todas as unidades privadas estavam com leitos clínicos e de UTI ocupados e que essa situação gerava uma “pressão adicional sobre o sistema público”.
O pico da segunda onda de Covid no Amazonas ocorreu no dia 14 de janeiro. Naquele dia, o então secretário de Saúde, Marcellus Campêlo, anunciou que a crise de oxigênio havia se agravado, a entrega do produto fora sido paralisada e que pacientes acometidos pela Covid-19 teriam que ser transferidos para outros estados.
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No pico da segunda onda, o Amazonas ainda não tinha vacinas contra a Covid-19 disponíveis. As primeiras doses (256 mil) chegaram no estado no dia 18 daquele mês, mas foram direcionadas apenas aos profissionais da Saúde que estavam atuando na linha de frente no atendimento à população e aos povos indígenas aldeados.
Tratamento em casa
Com o colapso no sistema de saúde do Amazonas, familiares de pacientes em estado grave decidiram montar estruturas em casa para tratar a doença. A avó e a tia de Sâmela Hidalgo, que estavam com quase 80% do pulmão comprometido, tiveram dificuldade para encontrar vagas porque, segundo a editora de quadrinhos, Maria é idosa, e Jaqueline, por ser surda, conversa apenas em libras e é esquizofrênica.
De acordo com Sâmela, o tratamento em casa começou no dia 10 de janeiro com um cilindro de oxigênio pequeno. Depois, os familiares conseguiram uma bala de oxigênio maior. “A gente conseguiu com um primo meu. Ele tinha na oficina dele de carros. As duas ficaram dividindo oxigênio em casa. (O insumo) durava uma noite, pois ambas usavam, e a gente tinha que ir lá na Carboxi ou na Nitron pra conseguir mais oxigênio”, afirmou.
A disputa pelo insumo aumentou, segundo Sâmela, no dia 12 de janeiro. “A gente já não conseguia encontrar oxigênio para encher essas duas balas de oxigênio. Então, foi aquele desespero todo”, afirmou a editora de quadrinhos.
Sâmela relata que, na fila para comprar oxigênio, a situação era tensa. “Cada telefone que tocava eu lembro que a gente ficava muito nervoso porque a pessoa recebia o telefonema e saia da fila chorando porque alguém da família tinha morrido e não tinha dado tempo nem da pessoa encher o oxigênio. E a fila só andava dessa forma, quando alguém saia da fila chorando. A gente ficava naquela expectativa, naquele medo. A gente não queria que nosso telefone tocasse para a gente não receber essas notícias”, afirmou.
Além do oxigênio, os familiares tiveram que arcar com os custos com médico e fisioterapeuta particular e com remédios e exames. Segundo Sâmela, as despesas chegaram a R$ 40 mil. “A gente tinha que pagar médico particular para vir em casa. Era R$ 800 a consulta de cada uma. Todas as vezes que o médico vinha aqui em casa a gente tinha que pagar R$ 800 da consulta de cada uma. A fisioterapeuta vinha aqui três vezes por semana”, disse.
O que aprendemos com a segunda onda?
Para o médico infectologista Nelson Barbosa, a segunda onda da Covid-19 no Amazonas expôs a necessidade de planos alternativos de emergência. “Aos gestores de saúde, eu espero que eles tenham aprendido que nós devemos ter o plano A, B, C e D na questão de consumo de oxigênio, de insumos, materiais permanentes, de materiais descartáveis. Isso as autoridades de saúde devem ter aprendido”, disse.
Em relação a população, Barbosa afirma que a crise mostrou que ainda não é hora de relaxar nas medidas preventivas. “A população tem que aprender que não é porque se vacinou que vai relaxar no uso da máscara, no uso do álcool em gel, começar a aglomerar. Olha aí, por isso estamos vendo o aumento no número de casos, que não está se refletindo no aumento do número de mortes, mas isso tem que servir de alerta para a população”, afirmou.
Nas primeiras semanas do ano, o número de novos casos disparou no Amazonas, saltando de 32 no dia 3 de janeiro para 2.404 nesta quinta-feira (13). O boletim da FVS-AM divulgado hoje aponta quatro óbitos pela Covid-19, sendo 3 ocorridos na quarta-feira (12) e 1 óbito foi encerrado por critérios clínicos, de imagem, clínico-epidemiológico ou laboratorial.
Para o infectologista, a discrepância entre o número de novos casos e o número de mortes não é motivo para o relaxamento das medidas preventivas, pois o vírus ainda continua circulando. “Não é porque se vacinou que pode relaxar no uso de máscara, que pode aglomerar. Nós estamos ainda com o vírus circulando e na ameaça de uma nova variante, que é a ômicron. Então, não é hora de relaxar, não é hora de comemorar”, disse o médico.
Barbosa afirma que há risco de uma nova onda com os não imunizados. “Só a vacinação foi capaz de modificar a curva de morte. E digo mais, a maioria das pessoas que estão sendo internadas não tomaram uma única dose de vacina ou estão com apenas uma dose do imunizante. Logo, se houver uma nova onda, será a onda dos não imunizados”, afirmou o infectologista.
Nesta terça-feira (13), o secretário de Saúde do Amazonas, Anoar Samad, afirmou, em vídeo divulgado nas redes sociais, que 67% dos pacientes internados em UTI no estado amazonense não se vacinaram ou estão com a imunização incompleta contra a Covid-19. Samad alertou para o percentual e pediu que a população busque a imunização.
Para Barbosa, a resistência em relação às vacinas se dá pelas notícias falsas que circulam na internet e por questões ideológicas. “Primeiro atribuo às fake news. O outro motivo é que no Amazonas temos muitos seguidores do nosso presidente (Jair Bolsonaro), que é totalmente contra os imunizantes”, disse o infectologista.
Barbosa afirma que a pandemia de Covid-19 só deve encerrar quando a imunização alcançar também os países pobres, que ainda não têm acesso aos imunizantes. “(Só deve acabar) quando os países ricos doarem vacinas aos países pobres, posto que eles são o celeiro de novas variantes. Só a África do Sul já contribuiu com duas variantes: a variante Beta e a variante Ômicron. Quando a distribuição e administração dos imunizantes forem igualitárias no mundo, ficaremos talvez livres do coronavírus”, afirmou o médico.