Por Alessandra Taveira e Walter Franco, da Redação
MANAUS – O Rio Negro igualou a marca histórica de 29,97 metros neste domingo, 30, um dia após o aniversário da cheia de 2012. O fenômeno recorrente no Amazonas ainda surpreende moradores de bairros às margens dos igarapés de Manaus que, em meio à pandemia, tiveram suas casas atingidas pelas águas do rio.
O atual contexto pandêmico impossibilitou que famílias preparassem suas residências para a cheia, seja por falta de recursos financeiros seja por perdas e preocupação com parentes infectados pelo coronavírus.
A dona de casa Maria do Socorro, 67, que mora há 20 anos no Bairro do Céu, Centro, perdeu o marido em janeiro deste ano vítima da Covid-19, no momento em que a Saúde no Amazonas colapsou e pacientes ficaram sem oxigênio. Na mesma época, o filho dela também acometido pela Covid foi transferido para outro estado para tratamento.
“Quando meu filho voltou, após meu marido falecer, ele não tinha mais onde morar porque pagava aluguel. Então eu o acolhi, mas agora a casa encheu e nós tivemos que pagar por esse quarto”, disse dona Maria. “É aqui que ele dorme com a esposa e o filho, eu também durmo aqui e tenho uma menina deficiente, de 48 anos.”
Marcada pela Defesa Civil como ‘inabitável’, a casa de madeira da dona Maria está submersa, com a estrutura comprometida. “O prejuízo que tive, das minhas coisas aí dentro, foi só um fogão. A gente não teve como arrastar para trazer para cá. Aí no outro dia, quando a gente foi atrás, ele ‘tava’ passeando dentro d’água”, lamenta a moradora aposentada.
No quitinete ao lado, a também aposentada Maria de Souza Ferreira, 75, relata que apesar de morar há 40 anos no local e ter algum dinheiro guardado, não conseguiu prever os impactos da cheia na sua residência e, por isso, teve que se mudar. Ela vivenciou a cheia de 2012, e disse que até construiu marombas dentro de casa e tentou permanecer no local “mas é muito ruim de ficar na água”, justifica “tem muito bicho, muito sujeira.”
Apesar do visível comprometimento dos imóveis, as aposentadas aspiram retornar para suas casas. “Se Deus quiser, Nossa Senhora, eu vou voltar para a minha casa. Eu vou mandar ajeitar tudo. Se eu tivesse um dinheiro, eu mandaria tirar todo esse assoalho e faria ela mais alta”, disse dona Maria de Souza.
Manifestando a mesma fé, a vizinha, Maria do Socorro, diz que pretende reformar a casa agora inundada. “Que Deus me dê muitos anos de vida, me dê forças e que eu consiga vencer tudo isso. No dia que não puder comprar um almoço, compro um pau, no que não puder comprar um pau, compro um almoço, para que eu possa levantar ela. Vai custar muito. Não sei se eu vou alcançar até lá, porque do jeito que as coisas ‘tá’…”, finaliza.
Em direção oposta ao Bairro do Céu, a família Duarte almoçava na casa às margens do rio no Beco do Corinthians, quando a reportagem do ATUAL os abordou. O local do almoço, aparentemente improvisado por conta da água que tomava a parte interna da casa, acolhia parentes e amigos em volta de uma mesa servida com a típica caldeirada de tambaqui e farinha.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mais da metade das moradias em Manaus (53%) são consideradas palafitas, ocupações e loteamentos, locais com difícil acesso a saneamento básico e serviços essenciais.
Os moradores do Beco do Corinthians vivem às margens de um rio poluído e sem assistência na infraestrutura. Eles reclamam que há poucos metros dali, a prefeitura instalou pontes, mas que no Beco, eles quase não conseguem transitar porque o rio já toma as calçadas e pisos das casas.
Sete pessoas moram na residência e se deslocam por sobre tábuas improvisadas como se fossem pontes. O carpinteiro Jocilon Duarte, 39, foi quem instalou as madeiras e, com a ajuda da esposa, Eloane Batista, 33, adaptou a casa para não ter prejuízo com os móveis. “Só o ventilador queimou”, relata Jocilon, “mas ainda vamos ter que levantar as camas porque ‘tá’ faltando pouco para a água chegar no colchão”.
“A gente imaginava que não ia chegar aqui porque ‘tava’ devagar a enchente, mas rapidinho subiu a água e não conseguimos nos preparar a tempo”, disse Jocilon. “Os governos anteriores se antecipavam com os recursos, dessa vez não ajudaram nem com tábua nem com auxílio, daí eu tive que emprestar dinheiro para comprar uma dúzia e meia de azimbre, por R$ 393.”
O casal ainda tentou conter a água com tábuas por cima do piso original, como se fossem ‘marombas’ dentro da casa mas “quando a gente pensou que não, já estava tudo submerso”, disse Eloane. Eles recorreram à ajuda de amigos para custear a nova estrutura. “Nós já estávamos andando por dentro d’água dentro de casa e foi o jeito pedir dinheiro. Ninguém está esperando por isso.”
Em um tour pelo espaço, a dona de casa relata a dificuldade para transitar nos cômodos. “Não tem espaço, isso é só para andar mesmo. A pessoa que não tiver equilíbrio cai dentro d’água”, diz Eloane.
Comércio
A enchente mudou o cenário manauara. Muitas ruas do Centro da cidade ficaram alagadas. Em algumas vias, o trânsito teve sua rota alterada. A prefeitura ameaçou mudar o itinerário dos ônibus que trafegam pela Avenida Floriano Peixoto, mas desistiu porque a medida poderia comprometer o comércio na área.
Apesar da enchente escondendo as ruas do Centro, atrapalhando a circulação de pedestres e veículos, e tomando o espaço que é seu por direito natural, curiosos são atraídos para fazer registros e contemplar o fenômeno, o que não significa um acréscimo nas vendas do comércio.
“Tava ruim devido à pandemia e com a cheia piorou. É muita gente passeando, mas não se reflete em venda. Para o comércio não ‘tá’ bom o movimento, não”, disse Maikon Braga, 39, dono de uma loja de acessórios, localizada na Avenida Floriano Peixoto em frente aos tapumes improvisados pela prefeitura.
Além de ter as receitas comprometidas, vendedores precisam lidar com o cansaço diário ao tentar conter as águas do rio. “Tivemos que fazer a mureta, mas a água ‘tá’ infiltrando aqui pelos lados e todos os dias temos que tirar a água da loja. Prejudica nas vendas e o cansaço bate”, disse Carleandro Costa, 28, vendedor em uma loja de roupas.
Marca histórica
Em 2012, a cheia do Rio Negro bateu o recorde estabelecido em 2009, quando o nível do rio chegou a 29,77 metros. A marca foi batida no dia 16 de maio de 2012, alcançando os 29,78 metros.
Mas foi só no dia 29 de maio de 2012 que o rio chegou ao seu nível máximo, de 29,97 metros, deixando 53 municípios em estado de emergência. Neste ano, cerca de 81 mil famílias foram atingidas em todo o Estado.
Relatos
Na sexta-feira, 28, às vésperas do aniversário da cheia de 2012, a reportagem do ATUAL esteve no Centro de Manaus para cobrir os impactos no comércio e na vida das pessoas que vivem às margens do rio.
Assista ao webdocumentário produzido e roteirizado por Alessandra Taveira e Walter Franco.
Sinceros agradecimentos ao catraieiro Robson Tur, pela disposição e referências de fontes, e às famílias que receberam a equipe do ATUAL em suas residências, na pessoa da dona Maria do Socorro, 67, moradora do Bairro do Céu, e do Jocilon Duarte, 39, morador do Beco do Corinthians, no Educandos.
(Colaborou Iolanda Ventura)