Por Jullie Pereira, da Redação
MANAUS – Na noite dessa quarta-feira, 3, uma série de denúncias foi divulgada na internet de supostas fraudes que teriam acontecido no vestibular da Ufam (Universidade Federal do Amazonas). Fotos de alunos brancos foram publicadas ao lado das categorias escolhidas por eles em que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas.
Na descrição do perfil que fez as denúncias, o autor diz que o perfil foi “criado para exposição de autodeclarados de cotas nas universidade do Amazonas. Quer expor algum indevido? Envie-nos na dm”. O perfil é anônimo e as denúncias são feitas no Twitter. Na manhã dessa quinta-feira, o perfil já havia sido retirado do ar.
Um dos alunos exposto, Andrey Talison Soares, de 20 anos, que passou no curso de Jornalismo da Ufam em 2018, na modalidade de pretos, pardos ou indígenas, justifica sua decisão a partir da autodeclaração de pardo. “Tem vários tipos de características, o fenótipo, o colorismo, não é só a questão da cor. Toda a minha família é negra ou indígena, então eu me considero pardo. A minha boca é carnuda, o meu cabelo é enrolado. Eu conversei com outras pessoas que se autodeclararam pardas e nem elas sabiam na época, então é uma confusão”, disse.
Andrey diz que não julga quem o expôs e também não pretende tomar nenhuma atitude contra, mas acredita estar certo sobre sua condição de pessoa parda. “Se eu voltasse em 2017 em colocaria de novo a minha condição de pardo, porque eu tenho o fenótipo, a minha família é toda de negros e pardos, eu sou o mais clarinho deles”, disse.
Ele admite que considera o sistema de cotas falho e que deveriam ter outras avaliações. “Realmente o sistema de cotas é um sistema muito falho, deveria ter outros meios e não só a autodeclaração. Eu não fico chateado com eles (quem denunciou) mas acho que deveriam pensar nesse debate”, disse.
Para o professor, mestre e pesquisador de Antropologia e Sociologia Francinézio Amaral, o termo ‘pardo’ é um erro histórico que invisibiliza pessoas negras e dá espaço para as brancas. “Existe um equívoco histórico do poder público, que inventou o conceito de ‘pardo’, pra livrar o país de ser reconhecido ou como Negro ou com Indígena. Com isso, criou-se um idéia equivocada de que, sendo pardos, todos são ‘iguais’. Porém, isso inviabilizou negros e indígenas e ressaltou os brancos”, disse.
Para ele, a autodeclaração não deve ser entendida como uma avaliação de ancestralidade. “A autodeclaração deve ser entendida como processo social, para além do chamado “colorismo”. Ou seja, nunca se tratou de tons de pele ou de herança sanguínea”, disse.
O sociólogo analisa que o sistema de cotas está sendo aplicado de forma errônea e o termo ‘pardo’ deveria ser extinto dessa avaliação. “O problema não é a política de cotas, mas a forma como ela é aplicada, que, por vezes, não cumpre os processos de fiscalização adequados. Nesse momento, em que esse debate vem à tona, seria essencial que se discutisse o fim do uso oficial do termo ‘pardo’. Seria um passo muito importante, no processo de superação dos racismos, em nossa sociedade, uma vez só nesse país, inventaram essa expressão ‘pardo’ “, disse.
Alem da falta de fiscalização, Amaral também destaca a “má fé” dos candidatos, como sendo um problema. “O mais grave deles é a má fé dos indivíduos, que não conseguem perceber o sentido da política de cotas, se sentem ameaçados e decidem cometer o crime de fraudar as regras, pra manter seus privilégios e impedir o acesso de negros, indígenas e pobres”, disse.
Juridicamente falando
A Presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/AM, Carol Amaral, explica que apesar de não ter tipificação na legislação ou código penal, a fraude pode ser enquadrada no crime de falsidade ideológica e pode render uma suspensão da matrícula. “Nós temos no artigo 299 do código penal o crime de falsidade ideológica que consiste em omitir em documento publico ou particular ou fazer inserir informação falsa com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar fato juridicamente relevante. A pena é de 1 a 5 anos de reclusão ou multa. Então pode ser enquadrado no crime de falsidade ideológica e no âmbito da Universidade essas pessoas podem ser deligadas também”, disse.
Carol fez um apelo para que a Ufam encaminhe o caso para avaliação das autodeclarações. “Não houve nenhuma manifestação oficial da Ufam, mas fica o apelo da Comissão de Igualdade Racial da OAB para que a Ufam com urgencia viabilize a criação dessa Comissão afim de que essas fraudes não mais ocorram, para que essa situação não aconteça. Porque infelizmente temos pessoas de má fé tentando usurpar vagas destinadas ao sistema de cotas”, disse.
A Comissão, que já existe na Ufam, seria responsável para averiguar os casos.” A universidade tem como averiguar se a sua autodeclaração é legítima. É importante para que haja a efetividade da política de cotas que as universidades componham bancas de heteroidentificação”, disse Carol.
Carol também alertou os denunciantes que podem também ser processados por calúnia e difamação. “As denuncias devem ser encaminhadas diretamente à Universidade Federal do Amazonas e ao Ministério Publico Federal, para averiguação das fraudes. Eu queria deixar um alerta, cuidado com as redes sociais, a forma como se denuncia pode gerar processo judicial por calúnia ou de difamação. Então é importante usar de forma inteligente e também fazer as denúncias aos órgãos competentes”, disse.
Carol explica que os danos da fraude por cota são incontáveis, considerando que limita a vida de pessoas que, historicamente, passaram por um processo de marginalização. “Então quando você se autodeclara preta, parda o indígena, sem ser, além de você estar cometendo um crime, você está roubando a vaga de outra pessoas, tirando uma pessoa preta de dentro da universidade pública. Então os danos causados são inimagináveis, você tá tirando de uma pessoa preta uma oportunidade que já lhe foi tirada, foi tirada de seus antepassados”, disse.
Segundo a advogada, as cotas são políticas de reparação e que garantem direitos civis. “A cota racial é uma política de reparação, no sentido de que haja representativa de pessoas pretas e pardas dentro da universidade. Historicamente são pessoas que não ocupam espaços devidos dentro das universidades, então essa falta criou a necessidade de uma política de reparação para que seja garantida a essas pessoas o direito de ingressar na universidade pública”, disse.
O que diz a Ufam
Em nota, a Ufam informou que está ciente das acusações que foram feitas na internet, e que está apurando as denúncias feitas diretamente ao órgão. A nota também diz que em caso de fraude confirmada, os alunos terão suas matrículas suspensas. Veja a nota completa:
Da UFS também.