Trata-se de um espaço acolhedor e educativo recuperado no conjunto Flamanal, no bairro Planalto, zona Centro-Oeste da cidade de Manaus. Resultado do empenho cooperativo de moradores da comunidade, a Praça das Flores substituiu uma “lixeira viciada”, usada como depósito de descarte dos mais variados e indesejáveis materiais. Segundo o iniciador do projeto, Gilberto Ribeiro, o local também era um refúgio para usuários de drogas. Localizada às margens do Igarapé do Gigante, a antiga lixeira também simbolizava o desprezo generalizado por estes corpos hídricos que perpassam toda a cidade de Manaus. Além de configurar uma das peculiaridades da cidade, os igarapés representavam verdadeiros refrigérios naturais, que ajudavam a população resistir ao conhecido calor amazônico, sendo estratégicos no auxílio para a realização das atividades domésticas.
O desprezo pelos igarapés já podia ser notado na época do boom da borracha (1890 – 1912), quando eles começaram a ser vistos como obstáculos para um projeto urbanístico importado, que previa uma cidade plana, europeizada e funcional para o comercio do látex. Nesta época, realizou-se o aterramento de diversos igarapés, visando à criação de ruas e avenidas, a fim de projetar a imagem de uma urbanidade moderna e atrativa aos negócios. Ignorando as características regionais, o plano urbanístico de Manaus projetou um estilo de vida exógeno para uma pequena burguesia que se beneficiava da produção da borracha, expulsando da cidade a maioria da população composta por caboclos, indígenas e migrantes. Assim como estes setores mais pobres da população, os igarapés também eram vistos com preconceitos e como obstáculos à modernidade por isso, deveriam ser escondidos da vista ou eliminados.
A política da Zona Franca de Manaus (ZFM) também não foi favorável aos igarapés. Implantada sem um mínimo de planejamento urbano, a ZFM atraiu milhares de migrantes provenientes dos estados da Amazônia e de outras regiões do Brasil. Desprovidos de proteção, as margens dos igarapés acolheram grandes contingentes populacionais que não tinham lugar onde se instalar, dando origem a verdadeiras cidades flutuantes, caracterizadas por precárias condições de habitabilidade. Enquanto isso, as empresas da Zona Franca transformaram estes corpos hídricos em grandes depósitos de materiais contaminantes. Atualmente, estes igarapés ainda recebem a maioria dos esgotos da cidade, demonstrando a irresponsabilidade da Concessionária Águas de Manaus, empresa privada responsável pela gestão do abastecimento de água e esgotamento sanitário da capital amazonense. Tudo isso, com o consentimento do poder municipal e a omissão das instituições públicas.
Estamos diante de uma política devastadora adotada em Manaus contra a qual o projeto da Praça das Flores visa apresentar uma alternativa. Visando ser uma iniciativa concreta de sensibilização ambiental, de construção de espaços públicos democráticos e de luta pelo saneamento básico, a Praça das Flores também pode ser vista como uma demonstração da capacidade de autogestão da sociedade civil, que reconhece cada vez mais as limitações da iniciativa privada na gestão dos serviços públicos e as fragilidades do poder estatal na administração da cidade. Se de um lado é evidente a interferência dos setores empresariais que dominam cada vez mais os serviços e bens públicos, discriminando todos os que não podem corresponder aos seus interesses de maximização de lucros, de outro lado, é possível perceber que a gestão estatal encontra-se capturada por uma elite governamental que tem se mostrado indiferente às grandes necessidades da população.
A emergência de experiências em que a própria sociedade civil organizada toma a iniciativa de administrar os bens públicos ou bens comuns tem sido hostilizada por aqueles que defendem uma atuação mais forte dos empresários na condução da sociedade. Os defensores da ideologia do mercado buscam assumir todos os espaços da sociedade, definindo, através da lógica do lucro, o que as pessoas devem usar, fazer e pensar. Neste sentido, as experiências de autogestão possuem uma mensagem revolucionária, pois ousam instaurar um modelo de gestão participativa, transparente e mais adequada aos desafios ambientais e sociais da nossa época. De fato, em uma comunidade os moradores possuem um conhecimento mais realista dos seus problemas, enxergando a realidade a partir de valores e prioridades diferentes da lógica rentista e da perspectiva de poder adotadas pelos setores empresariais e agentes governamentais.
Em Manaus, ainda é possível visualizar outras inciativas em que a própria comunidade se cansou da exploração e tomou as rédeas da problemática, fazendo fortes críticas tanto à gestão empresarial quanto à forma estatal de administrar o público. Destacamos, por exemplo, a gestão comunitária do abastecimento de água do bairro Colônia Antônio Aleixo (Zona Leste) e o projeto de revitalização da Lagoa do Parque São Pedro (Zona Centro-Oeste). Visando garantir o acesso à água potável para todos os moradores do bairro Colônia Antônio Aleixo, a comunidade resiste, heroicamente, a entrega da gestão do abastecimento de água à empresa Água de Manaus, pois esta costuma cobrar tarifas abusivas aos seus clientes, além de oferecer serviços precários ao longo da cidade. No Parque São Pedro, a comunidade toma a iniciativa de realizar a revitalização da Lagoa, sem deixar de reclamar da inércia do poder público diante da depredação da natureza e denunciando a irresponsabilidade da empresa Águas de Manaus, que lança no local os esgotos da cidade.
Estas inciativas mostram uma via alternativa entre o neoliberalismo destruidor de direitos e depredador ambiental e o estatismo opressor, que é mecanismo da manutenção de poder. A sociedade civil, à medida que se organiza é capaz de concretizar projetos, construindo espaços socialmente mais justos, politicamente mais democráticos e ambientalmente mais sustentáveis. Trata-se da instauração de uma nova cultura política, que possibilita compreender que a riqueza não é gerada apenas pelos donos do capital ou pelos administradores estatais, mas pode ser criada por comunidades ou sociedades cujos membros põem em comum saberes e competências a fim de criá-las.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.
Há bastante tempo o Amazonas precisa repensar os seus modos de utilização dos recursos hídricos que lhes são abundantes em qualidade e quantidade, porém não se pode admitir que o tratamento dos mananciais de água continuem como apenas carregadores de resíduos sólidos e eflurntes. As bacias urbanas e periubanas dos 62 municípios estão todas em fase de degradação, umas mais e outras menos. Isso significa que o caus se aproxima e não podemos mais ficar apenas apenas como meros expectadores desta situação. A implantação dos Comitês de Bacias no Estado do Amazonas se faz necessário como órgão gestor das bacias hidrográficas.
O Brasil estar sem rumo, somos grandes, e rocos demais para ser gerido por gestores piblicos incompetentes.