O reconhecimento do direito humano à água e ao saneamento pela Organização das Nações Unidas (ONU) representa uma importante conquista civilizatória. Apesar da oposição das grandes empresas e diversas potências mundiais, a ONU afirmou a existência de um “direito à água potável e segura e ao saneamento como direito humano essencial para o gozo pleno da vida e de todos os direitos humanos” (A/RES/64/292, 03 de agosto de 2010).
O reconhecimento deste direito valoriza e protege a vida humana independentemente da sua utilidade para a sociedade e para o sistema econômico predominante. A vida possui um valor incalculável em termos econômicos, não podendo ser submetida ao regime de compra e venda. Mas tal dignidade é ignorada pelo sistema capitalista e seus defensores, que buscam transformar tudo em mercadoria em favor da manutenção dos seus lucros e do fortalecimento da ditadura do dinheiro.
Esta visão econômica incorporada em poderosos grupos e setores da sociedade busca fragilizar todos os direitos e garantias coletivas que possam oferecer alguma liberdade às pessoas perante o mercado ou possibilitem os cidadãos viverem sem se humilharem diante dos grandes banqueiros, empresários e financistas. Contrários a qualquer iniciativa que busca controlar o mercado, os seus defensores trabalham para que todas as coisas estejam à sua disposição para serem convertidas em rendimentos: a água, a natureza, a cultura e a vida.
Há vinte anos o ex-governador Amazonino Mendes e o ex-prefeito Alfredo Nascimento entregaram para o mercado a gestão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da cidade de Manaus, submetendo ainda mais a vida dos manauenses ao domínio do dinheiro. O plano era que a água potável fosse reservada somente para aqueles que a pudessem obter no mercado. O acesso a este bem essencial passou a depender do pagamento de elevadas tarifas cobradas pelas empresas que se alternaram ao longo da concessão: Lyonnaise des eaux –Suez, Soluções para a Vida, Águas do Brasil e Aegea Saneamento e Participações.
Em tempos de crise generalizada essa ânsia pelo lucro tem provocado níveis extravagantes de exploração e desumanidade. Pandemia, corrupção, desemprego, pobreza, violência, devastação ambiental e poluição hídrica. Nenhuma destas tragédias aplaca a ganância das empresas do saneamento, que aspiram maximizar infinitamente as suas receitas. A lógica capitalista fecha os olhos para as condições humanas e sociais que assolam o povo manauara.
A concessionária Águas de Manaus, controlada pela Aegea Saneamento e Participações, tem obtido sucesso na sua missão de ampliar os lucros do empreendimento. De acordo com o balanço patrimonial da empresa, nos últimos dois anos a receita bruta de arrecadação foi de mais de R$ 1,55 bilhão de reais. Com isso, a Águas de Manaus alcançou um crescimento de 93% no lucro líquido em apenas dois anos, 2019 e 2020.
Mesmo diante de extraordinária arrecadação, a empresa ainda adia a universalização dos serviços de abastecimento de água na cidade e entrega os serviços de esgotamento sanitário somente para 22% da população. Este serviço está disponível em pouco mais de 60 localidades, incluindo conjuntos residenciais e comunidades. Das 187 áreas oficiais de Manaus, entre bairros e comunidades, só 15 têm serviços de esgoto.
O desejo de lucrar é desmedido! Apesar da ótima rentabilidade em troca de serviços precários, a empresa atualmente pressiona para aumentar a tarifa de água em 24,5%. Conforme o IBGE, Manaus tem 176 mil famílias vivendo abaixo da linha da pobreza, ou seja, em situação de indigência completa. Além disso, estão cadastradas 135 mil famílias no Programa Bolsa Família, indicando o alto grau de empobrecimento da população. Nada disso, sensibiliza a empresa! Sua preocupação tem sido só com o seu capital.
Não foram essas as promessas que fizeram quando privatizaram os serviços de água e esgoto da cidade. No entanto, para quem conhece a lógica que rege o mercado essas contradições não são novidades. Multiplica-se no mundo o encerramento de contratos privados dos serviços de água e esgoto porque a política de privatização é desumana e insustentável.
Em Manaus, até quando o Poder concedente (Prefeitura de Manaus), o Judiciário, o Legislativo e os órgãos de fiscalização vão acatar silenciosamente tamanho desrespeito contra a população? Quando vão colocar em primeiro lugar a vida e os direitos humanos? Quando vamos nos empenhar de verdade na construção de uma cidade justa, humana e ambientalmente sustentável?
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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