
Por Diogo Rocha, do ATUAL
MANAUS – O registro de abusos, condutas impróprias e acidentes usando a câmera do celular se tornou comum. Com um smartphone nas mãos, as pessoas passaram a mostrar em fotos e vídeos, às vezes até em tempo real [em lives nas redes sociais], flagrantes de crimes e tragédias.
Mas filmar alguém cometendo um ato criminoso para denunciar é aceito juridicamente? É permitido expor uma pessoa diretamente na internet quando você considerar que houve um delito grave?
A advogada Clotilde Miranda de Castro, especializada em Direito Público, esclarece que a Justiça aceita vídeos e áudios gravados por celulares como provas para uma acusação. Mas vai depender se o denunciante é a vítima ou apenas a testemunha de um crime.
“A gente precisa diferenciar a gravação feita por um dos interlocutores, ou seja, alguém que está participando de uma conversa, por exemplo, da gravação feita por uma terceira pessoa sobre algo que está acontecendo entre essas duas [pessoas]. No primeiro caso, a gravação feita por um dos participantes do diálogo [ou ação] é perfeitamente possível, inclusive, para ser utilizada como prova para acusar”, explica Clotilde.

No caso de quem apenas registrou o flagrante, se o denunciado estiver em um local em que sua privacidade é assegurada constitucionalmente, a denúncia tem o risco de perder a legalidade.
“Se [o local do flagrante] for um lugar onde está presente a inviolabilidade da privacidade, que é protegida pela nossa Constituição, aí para acusar qualquer pessoa a situação se complica porque ela vai ficar limitada à reserva de jurisdição, ou seja, de autorização judicial”, diz a advogada.
Mas nesta hipótese também depende do contexto em que as provas com as imagens do celular foram produzidas pela testemunha, segundo Clotilde Miranda. Um exemplo citado por ela é do médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra que abusou de uma paciente enquanto ela estava dopada e fazia uma cesariana em um hospital do Rio de Janeiro, em 2022.
“Se a gravação é feita por uma terceira pessoa porque o participante da situação, por alguma vulnerabilidade não pôde gravar, essa prova vai ser aceita para acusar. Um exemplo que todo mundo acompanhou na imprensa nacional foi o caso daquela mulher estuprada na sala de parto, em que as enfermeiras colocaram uma câmera [escondida] para gravar a situação porque já estavam suspeitando dos atos daquele médico”, afirmou.
Neste caso, o vídeo feito pelas enfermeiras serviu de prova para a prisão em flagrante de Giovanni. Ele acabou se tornando réu por estupro de vulnerável.
“Então, nestas situações a expectativa de privacidade, que neste caso foi o sigilo médico, não existe. Existe para proteger o paciente. Por exemplo, um paciente pode gravar uma consulta médica sem problema nenhum[…] Casos de abusos sexuais em que as vítimas são crianças são muito utilizadas essas gravações [de vídeos em sigilo] como provas e dão muito certo judicialmente falando. São necessárias, eu diria”, cita Clotilde.
Bom senso
A advogada recomenda muito bom senso do cidadão comum quando for filmar com o celular e usar as imagens para um fim específico. Em alguns casos, a gravação pode virar uma prova contra o autor do vídeo, que arcará com as consequências na Justiça.
“Eu não diria nem na hora de gravar [ter bom senso], mas na hora de utilizar essa gravação. Porque muita gente não tem nem noção de que está cometendo crime [quando compartilha vídeos, fotos e áudios]”, disse Clotilde.
“Teve o caso de um homem que abordou o advogado do presidente Lula, o Cristiano Zanin, num aeroporto [em janeiro de 2023] e começou a xingá-lo de uma série de adjetivos com o celular nas mãos gravando. Não satisfeito, ele publicou essa gravação como se fosse um troféu. Isso foi usado contra ele sem qualquer limitação jurídica para a acusação porque ele mesmo produziu aquela prova contra si sem qualquer coerção”, exemplificou.
Outro exemplo, segundo a advogada, são os vídeos dos atos golpistas do dia 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). “Aquelas gravações [dos manifestantes invadindo e depredando os Palácios do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal] publicadas e compartilhadas em todas as redes [sociais] estão sendo utilizadas como provas contra essas pessoas”, completou.
Mas para evitar violar a privacidade de uma pessoa e sofrer um processo na Justiça ou até inviabilizar a prova de um crime, Clotilde Miranda orienta a não publicar vídeos e fotos na internet sem antes consultar um advogado especializado.
“Se não tivermos lidando com pessoas em situação de vulnerabilidade, eu preciso me questionar: Estou em um local em que tem expectativa de privacidade? Por exemplo, eu vi um ato de violência no meio de um shopping e gravei. Tenho que me preocupar com a privacidade da pessoa que cometeu o crime? É lógico que não, porque ali [no shopping] não existe nenhuma expectativa de privacidade”, afirmou.

Testemunho tem mais respaldo
A percepção de que uma gravação tem mais respaldo jurídico que o depoimento de uma testemunha não está totalmente correta. A Justiça primeiro verificará o contexto do material audiovisual produzido.
“Na verdade, esse tipo de prova [em vídeo ou áudio] sempre vai passar por um crivo maior para analisar o contexto, para analisar a vítima e saber se o interlocutor participou ou não daquela situação para que sejam consideradas provas utilizáveis, inclusive para acusar”, disse Clotilde.
“Por outro lado, a prova testemunhal por mais delicada que seja porque as pessoas são suscetíveis a esquecimentos e falsas memórias é mais tradicional, digamos assim. Se foi prestado compromisso em juízo, aquela palavra vai ser utilizada como prova e ponto. Agora se vai ser valiosa o suficiente para condenar ou absolver alguém isso vai depender de todas as outras provas que estão no processo”, explicou.
Conforme a advogada, um processo penal bem instruído, com provas robustas (documentais, periciais, testemunhais, ambientais, gravações e etc),sempre será melhor aceito pelo Poder Judiciário.
Alerta aos pais
Gravar e tirar fotos da rotina de bebês e crianças e compartilhar nas redes sociais não é recomendável, de acordo com a Clotilde Miranda. Ela alerta que essa prática dos pais de expor os filhos, conhecida como sharenting, pode trazer riscos.
“Uma vez que as coisas estão publicadas na internet você perde o controle de onde esses dados vão parar. Se eu posto uma foto da minha filha hoje no Instagram, o fato que eu não sei se essa foto vai ficar restrita aos meus seguidores, que são pessoas que eu conheço e confio, ou se vai aparecer do outro lado do mundo, sabe Deus onde e porquê”, diz.
Segundo Clotilde, redes de pedofilia espalhadas pela internet se aproveitam destes compartilhamentos excessivos dos pais sobre a intimidade dos filhos para buscar novas vítimas.
“Então, compartilhar imagens de crianças com farda de aula, rotina de escola e locais que costuma ir é um perigo porque sempre tem pessoas mal-intencionadas”, avisa a advogada.
Ferramenta profissional
Com 28 anos de experiência no jornalismo do Amazonas e uma carreira premiada, o repórter-fotográfico Ricardo Oliveira usa profissionalmente o celular. O aparelho de última geração se tornou uma ferramenta mais prática na hora de registrar flagrantes, por exemplo.
“O celular é uma grande ferramenta para as pessoas comuns e jornalistas. Hoje todo mundo é um ‘repórter’ com celular. Está na rua e fez [o registro de] um acidente, assalto ou agressão. A pessoa comum, o pedestre, grava e está lá como repórter nestas situações”, disse Oliveira.
Nas pautas diárias, ele percebeu ser menos intimidador para o público um celular que a lente grande angular de uma máquina fotográfica profissional. No tiroteio em frente ao Fórum Ministro Henoch Reis, na zona centro-sul de Manaus, no dia 6 de janeiro de 2022, quando criminosos metralharam uma viatura da Polícia Civil do Amazonas, Ricardo Oliveira tirou com o celular uma fotografia do tenso momento que virou capa de revista e concorreu ao Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
“Eu, por exemplo, que trabalho em reportagem também [para a Revista Cenarium], o celular às vezes é muito útil por ser menor e as pessoas aceitarem mais o celular [para serem fotografadas e filmadas] do que uma máquina fotográfica”, compara.
Outra praticidade do celular é poder enviar ou compartilhar vídeos e fotos com mais celeridade, segundo Oliveira. “Os celulares hoje têm uma captação magnífica. Captação de cinema. E acho que nestas situações [de flagrantes], as pessoas comuns têm o celular com uma grande ferramenta e os órgãos públicos têm que tomar cuidado agora porque em uma situação de maus-tratos, o cidadão vai lá e grava seja na porta de delegacia ou hospital”, afirmou.
Para gravar com o celular, Ricardo Oliveira recomenda usar aparelhos top de linha. “Eu uso iPhone desde o primeiro lançamento. Eu acho os comandos rápidos . O melhor recurso é ter sempre em mão a tecnologia de ponta. Quando se compra ou se investe num aparelho desses, você está comprando uma câmera fotográfica e uma filmadora potentes”, disse.
Mais uma dica do experiente repórter-fotográfico é gravar com o celular, preferencialmente, na horizontal para ajudar no corte e não perder a qualidade das imagens.
E apesar dos recursos de fotografia e gravação de um aparelho móvel de última geração, Oliveira nunca abrirá mão da tradicional máquina. “Eu uso profissionalmente celular e câmera fotográfica. Hoje carrego menos peso. Eu tenho todas aquelas lentes grandes e pesadas que me servem para cobertura de futebol, bichos e natureza”, explicou.