Os vícios e o obscurantismo informacional, além de se constituírem em vetores de violência e criminalidade, também impactam nocivamente a cidadania, principalmente na medida em que comprometem o discernimento e limitam a cognição.
O processo de viciamento, muitas vezes acelerado e potencializado pelo obscurantismo causado por avalanches de informações de péssima qualidade, ofuscam e embasam o discernimento lúcido, inclusive obstaculizando maior amadurecimento da capacidade cognitiva. Não é difícil de constatar que a pior cegueira é a falta de discernimento.
Esse apequenamento da lucidez e do discernimento, chamado por Milton Santos de confusão dos espíritos, reduz quando não inviabiliza completamente nosso entendimento acerca da realidade do mundo, do país, da política, da economia, da sociedade e de nós mesmos. Trata-se de uma perda significativa na capacidade de ler e interpretar o mundo, bem como da própria condição nele. Uma forma de entorpecimento existencial e filosófico, que redunda em graves prejuízos políticos, sociais e econômicos. Um apequenamento da própria condição de cidadania.
No lugar do discernimento lúcido, o processo de viciamento e de obscurantismo informacional conduz ao entorpecimento das consciências e à domesticação ideológica voltada à mistificação do consumismo, ao canibalismo concorrencial e ao fundamentalismo do dinheiro e das “riquezas”, vistas como “delícias” da civilização materialista. Um regime de vida que promove o consumidor compulsivo ao invés do cidadão consciente e comprometido com um projeto de sociedade livre, justa e solidária. Um sistema de mercado, regido por corporações empresariais, no qual o poder da publicidade e da propaganda de produtos e de serviços põe em segundo plano uma relação sustentável com as coisas e o respeito elementar à dignidade humana. A pessoa é quase um item descartável.
Diante desse contexto, pode-se compreender, ao menos em parte, porque vinga predominantemente o lumpesinato político e uma práxis política medíocre, que nos conduz a uma democracia formal de mercado, amesquinhada pelo consumo de eleições periódicas que nada acrescentam ao país nem enriquecem a vida política da sociedade brasileira. O empobrecimento social e econômico reflete a miséria política de um país que vive do engodo eleitoral. Por outro lado, é preciso dizer que isso não serve para justificar nenhum regime político fechado nem de força, mas apenas advertir que o joguete eleitoreiro está levando à morte a política maiúscula, instalando gradualmente um totalitarismo disfarçado de administração pública, alcançando todos os campos: trabalho, instituições sociais, instituições de mediação política, empresas, relações interpessoais, invadindo até mesmo espaços antes destinados à livre pesquisa, ao refinamento das ideias e à manifestação do pensamento, como eram as universidades. Ensinava o mestre Milton Santos que “Dessa forma, o território, o Estado-nação e a solidariedade social também se tornam residuais.”
Tais efeitos danosos à cidadania e à vida em sociedade são, em grande medida, reflexos do processo de viciamento e de obscurantismo informacional em curso, numa escala planetária, que servem principalmente às formas perversas do paradigma de globalização em vigência e expansão.
Uma sociedade de viciados e demolidos cognitivamente não pode resistir aos injustos e nefastos efeitos de uma organização econômica e política espoliadora. Não percebe nem sobrevive ao canibalismo concorrencial. Não consegue desmistificar o sensualismo e o consumismo compulsivo que submete a todos às pretensões do mercado. Não é capaz de entender nem de enfrentar o fundamentalismo do dinheiro e os totalitarismos ideológicos, religiosos, políticos e mercadológicos em franca ebulição.
O obscurantismo informacional do discernimento e o processo de viciamento das consciências, sobretudo dos mais jovens, é uma ferramenta essencial para que os efeitos perversos desse modelo econômico e político são sejam devidamente percebidos nem confrontados. O que a grande maioria pensa saber sobre liberdade, justiça, solidariedade e democracia é algo vago, genérico, quase inaplicável. É conveniente que continue assim. O discernimento e a lucidez são perigosos… O vício e a avalanche obscurantista tem sua função e utilidade.
Formar competências cognitivas lúcidas que fomentem o discernimento potencialmente pleno, capazes de resistir ao obscurantismo, ao viciamento e à domesticação ideológica, que mistifica a jogatina política e econômica em vigor, é essencial à promoção da cidadania e da vida política na sociedade numa perspectiva democrática. O discernimento político, social e econômico é condição para manutenção de um regime político aberto e para a consolidação da democracia no Brasil, que parece haver estacionado sem amadurecer. É imprescindível que a educação e os processos de socialização das pessoas sejam capazes de prover a lucidez e a cognição plena, a fim de garantir conquistas humanas irrenunciáveis, desde o iluminismo libertário, passando pela declaração de direitos humanos, e a afirmação de pactos sociais e institucionais em prol da dignidade da pessoa humana, individual e coletivamente. A sociedade não pode continuar sendo “presa” fácil dos diversos tipos de manipulação, da violência e de fanatismos fomentadas pelo processo de viciamento humano e pelo obscurantismo informacional. Como esclarece Jean de La Bruyere: “Depois do espírito de discernimento, o que há de mais raro no mundo são os diamantes e as pérolas.”
O logos da clareza, da lucidez e do discernimento tem de prevalecer sobre o logos que atrofia a cognição, que obscurece a participação política, que usa a todos como massa de manobra, que sequestra o entendimento, que pirateia a liberdade, a justiça e a beleza. O logos autêntico tem que prevalecer sobre o logospirata. O logos real sobre o logos aparente, obscuro. O logos lúcido sobre o logos entorpecido, viciado. O logosneohumanista sobre o logosneomedieval. O logos da cidadania sobre o logos do viciamento e do obscurantismo.
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