Estariam as sociedades abertas, no Brasil, sob o risco de serem sitiadas em face das variadas e dinâmicas formas de corrupção, do crescente número de presídios e ação sistêmica de organizações e facções criminosas?
Em meados do século passado, sociólogos norte-americanos discutiam a hipótese de sociedades abertas converterem-se em sociedades sitiadas, em razão de permanentes ameaças visíveis e invisíveis decorrentes da ação ilícita e desviante, organizada ou não. Dentre os principais fatores desse cenário, indicava-se o avanço da criminalidade, da corrupção institucional e do número de presídios. Um contexto que atualmente, com raras exceções, é a regra. Em especial, a realidade brasileira, marcada continuamente por esquemas “oficiais” de diversas ordens, pela crescente ação de organizações e facções criminosas, pelo irrefreável aumento de unidades prisionais, pela radicalização do tratamento da questão social com medidas policialescas e de repressão armada, inclusive com o exército nas ruas e nos morros. Uma sociedade que já vive literalmente sob sítio.
Alguns afirmam que, no Brasil, a corrupção é epidemia cultural, como se a cultura fosse algo estático, imóvel, que não admitisse dinâmica de transformação por meio de intervenções planificáveis. De algum modo, mais do que compreender, os adeptos da corrupção com algo endêmico do Brasil, acabam por justificar essa ordem de coisas desviantes, que está presente em toda parte na máquina estatal, expressão histórica do patrimonialismo herdado. Desde os grandes esquemas de desvios de recursos públicos, cooptação de votos nos parlamentos e tráfico de influência junto a gestores públicos para servir a interesses privados e corporativos ao funcionário público que procura dar golpes na sociedade, burlando a função pública para a qual foi contratado, pondo-se à disposição de órgãos, setores e atividades distintos de sua atividade fim. Um modelo profundamente mergulhado na lama do fisiologismo sugador. E a sociedade, já espoliada e desassistida, mantém esses esquemas e remunera esses funcionários que não dão retorno pelo que recebem. Sociedade essa sujeitada à insaciável opressão tributária e cujo retorno, em termos de qualidade de serviços públicos, é praticamente ineficaz. Isso associada à política de concessão de bolsas assistenciais sem maiores responsabilidades nem prazo de duração, fomenta um processo cultural de reforço à dinâmica da corrupção institucionalizada, dita endêmica do Brasil. Desse modo, a corrupção sitia, do topo à base, em distintos graus, as esferas estatais e os diversos estratos da sociedade brasileira, favorecendo assim a própria economia do crime.
Há outros indicativos ainda desse sítio à sociedade aberta, inclusive na área de segurança pública: a robustez da economia das organizações e facções criminosas, a explosão da população carcerária, a proliferação do número de presídios, a ampliação de execuções resultantes da guerra pelo controle do tráfico de drogas em distintos territórios e também de óbitos decorrentes de confronto com a polícia, execuções à luz do dia de forma miliciana, o aumento geral da criminalidade, dentre outros. Aliás, um indicativo especificamente preocupante é que, dentre o crescente número de execuções, a princípio orquestradas por grupos e facções criminosas, constar cada vez mais autoridades policiais, bem como ameaças a membros do judiciário e do ministério público, que atuam no combate ao crime, suas organizações e facções.
Em contrapartida, tudo o que o regime político tem ofertado é, a cada dois anos, novas eleições, num ciclo de disputadas que não tem se revertido efetivamente em qualidade de gestão pública nem em qualidade de vida para a grande maioria da população brasileira. Uma disputa no qual todos se viciam num jogo de egos e de negociatas eleitorais. Um regime aberto de qualidade inferior, no qual a democracia está limitada a votar e ser votado periodicamente, em eleições que atuam como entorpecentes ideológicos e servem aos candidatos para captação de recursos por meio do financiamento privado de campanha. Muitos se tornaram especialistas nisso e enriquecem com a venda de mandatos. Um jogo execrável que tem adiado por décadas as verdadeiras reformas que o país necessita e alcance de bens e valores fundamentais à sociedade brasileira, dentre os quais uma ordem econômica e social mais justa, com vista a promover as condições básicas de dignidade humana a cada cidadão brasileiro.
Todo esse processo está levando a sociedade brasileira à exaustão. A falta de retorno desse sistema estável, e de crença na eficácia dos aparelhos estatais, tem levado à caótica (in)justiça com as próprias mãos, a bárbaros linchamentos públicos, à execução de inocentes, ao entorpecimento político e, por vezes, ao clamor pelo periclitante retorno de regimes fechados e de força, num atitude de claro desespero institucional, político e social. Nesse cenário de sítio, não é difícil entender a eclosão de movimentos e manifestações populares diversos, inclusive grupos de manifestantes que usam a violência como forma de expressão política. O Estado brasileiro simplesmente ainda não respondeu, em termos de ações e reformas mais efetivas na área social e política, a junho/2013. E, dessa vez, a sociedade parece não estar disposta a cair na apatia do esquecimento, muito menos com a folia da copa de futebol da Fifa, nem disposta a esperar tanto tempo para que mudanças reais comecem a acontecer.
Na área da segurança pública, a pressão social é insuportável e, aos poucos, por mais que se prendam muitos de forma constante e tantos outros sejam mortos em tiroteios com a polícia, fica claro que estamos mergulhados numa cultura criminógena, na qual a delinquência se forma em PG (progressão geométrica) enquanto a polícia, outros órgãos estatais e forças de repressão obtém resultados do combate ao crime em PA (progressão aritmética).
Portanto, é imprescindível que o ente estatal se repense, reforme e desperte em suas diversas políticas oficiais, nas diversas áreas de atuação, a fim de se evitar o que de pior pode resultar desse sítio à sociedade aberta. Não estamos tão longe assim dele. É algo demonstrável. E todos os dias os meios de mídia revelam e toda a sociedade assiste. É fundamental, enfim, reencontrar o caminho, pactuado socialmente, em favor da cultura de licitude e de abertura política, livre e capaz humanizar com dignidade as pessoas, antes que a mesma e suas autoridades sejam inteiramente sitiadas, numa tal situação que nem mesmo a perspectiva de justiça social resolva o impasse.
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