A atribuição de um valor econômico à água, instituída na Conferência de Dublin sobre a Água e Meio Ambiente (Irlanda/1992), foi criticada por diversos atores sociais vinculados às classes mais populares e aos movimentos sociais que defendem o direito humano à água e ao saneamento. Estas organizações sabem que a entrada da água no mercado, tão festejada pelos conglomerados multinacionais e agências financeiras internacionais, busca transformar este bem público em estratégia de produção de lucros privados. Esta dinâmica rompe a lógica do direito universal do usufruto dos bens comuns à medida que limita o seu acesso somente àqueles que podem pagar, prejudicando as populações mais pobres das periferias urbanas e áreas rurais.
Ao ser apropriada pela iniciativa privada, a água é transformada em produto de compra e venda, potencializando o processo de reprodução do sistema capitalista, que tem demonstrado grande eficiência na geração de desigualdades sociais e depredação ambiental. Não é novidade que este sistema de produção, assim como o paradigma tecnológico e a cultura do descarte estão levando a vida planetária a uma situação de risco, sendo responsável por inúmeras tragédias sociais e ambientais: exclusões sociais, pobreza, desmatamento, aquecimento global e destruição da natureza.
Esta situação tem sensibilizado às mentes e corações mais solidários, assim como os grupos sociais mais afetados, levando-os a pedir mudanças: mudança de mentalidade, mudança de estilo de vida, troca de modelo de desenvolvimento e mudança de economia. Para estes grupos, mais vale cuidar do planeta e preservar a vida do que se empenhar obcessivamente na produção infinita de lucros para beneficiar uma pequena elite econômica às custas da depredação ambiental e do sofrimento da maioria da população.
Ao ser tratada como mercadoria, a água é manipulada sob uma lógica artificial que agride a sua interligação essencial com o ecossistema. No mercado, a água é vista exclusivamente como commodity, não sendo reconhecidas as suas estreitas relações com o meio ambiente, com a saúde pública e com a manutenção da vida. Quando estas interações são reconhecidas, elas não são vistas como direitos dos cidadãos, mas como fatores que contribuem para a agregação de valor ao produto no mercado.
Sob esta lógica este bem essencial passa a ser gerido com o principal fim de produzir riquezas para os empresários, subordinando o abastecimento das populações à dinâmica mercadológica. Impossibilitadas de pagar pelas elevadas tarifas, as populações mais pobres são excluídas do acesso à água potável ou recebem um serviço precário e insatisfatório. Ao impedir o acesso destas populações à água e ao saneamento, a privatização retira delas aquilo que é mais básico para a vida. Em Manaus, são 228.889 pessoas sem acesso à água potável. Quanto ao esgotamento sanitário, a privatização exclui dos serviços de tratamento de esgoto um total de 1.869.202 de manauenses (SNIS 2017).
A violência contra a humanidade também é realizada à medida que a empresa e o poder público procuram esconder esta situação atrás de números forjados. Nas suas aparições públicas, a empresa Águas de Manaus alega ter atingido a universalização do abastecimento de água na cidade, mas os dados oficiais fornecidos ao Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS 2017) indicam a existência de uma cobertura que alcança somente 89,26% da cidade.
Ademais, uma pesquisa mais aprofundada aponta que o acesso efetivo à água potável em Manaus é ainda mais reduzido. Em audiência pública realizada na Defensoria Pública do Estado (28/09/2017) a empresa revela que somente 64% da população está ligada à rede de abastecimento de água. O discurso da universalização é fake! O seu objetivo é livrar a concessionária do crime ocultando os gritos das vítimas sob estatísticas forjadas. Esta violência contra o ser humano é própria do sistema econômico capitalista na sua versão neoliberal (mercado global, privatização e rigor fiscal).
A primeira experiência do neoliberalismo só pôde ser implantada num regime ditatorial (Chile, 1973-1990), provocando a morte violenta de centenas de pessoas, inclusive o assassinato do presidente eleito Salvador Allende. Atualmente, a ditadura do mercado encontrou formas mais sutis de se impor: capturando o Estado, definindo as políticas públicas, controlando a grande mídia, fragilizando as empresas e universidades públicas e naturalizando as desigualdades.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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