Não saber falar palavras iniciadas com a letra J ou pronunciar ‘pauzinhos’ já foi motivo para condenar à morte milhares de pessoas no Brasil.
Isso aconteceu na sangrenta Revolução Federalista (1893-1895) que envolveu todos os Estados do Sul do País. Para identificar os mercenários uruguaios que lutavam pelos inimigos, brasileiros pediam que os capturados dissessem termos iniciados com a consoante J, como ‘jarra’ ou ‘jato’; o próprio nome da letra (jota); ou ainda o termo ‘pauzinhos’. Por serem falantes de espanhol, eles se denunciavam pronunciando ‘shôta’ e ‘paucinhos’.
Possivelmente, a artimanha brasileira foi inspirada numa passagem bíblica (livro de Juízes), que retratou a guerra entre duas tribos israelitas: Gileade contra Efraim.
Os efraimitas eram muito ressentidos e abusados. Em tempos de guerra, ninguém podia contar com eles, pois não se juntavam às outras tribos. Todavia se a vitória fosse dos israelitas, lá vinham os efraimitas reclamar e ameaçar guerrear contra seus irmãos. “Por que não chamaram a gente? Agora não temos participação na glória nem na partilha dos despojos!”
Após o triunfo sobre os midianitas (nada a ver com profissionais da mídia), os mimizentos efraimitas foram cobrar com aspereza o líder Gideão, que contemporizou e acalmou a situação. Talvez a convocação para a guerra tivesse caído na caixa postal ou ido para o e-mail errado.
Algum tempo depois, houve uma nova peleja e, de novo, nenhum efraimita apareceu para ajudar. Outra vez, os israelitas foram vitoriosos. Logo, vieram os valentões cheios de armas e razão reclamar que teriam sido esquecidos e excluídos. A discussão se intensificou e os petulantes ameaçaram matar o líder Jefté e toda a sua família botando fogo na casa dele. Devem também ter lembrado que Jefté era, de fato, filho de uma prostituta.
O chefe dos gileaditas ficou indignado: “então vocês querem guerra, é?”. Como era esperado, os efraimitas perderam o combate. O exército de Jefté bloqueou as passagens do rio Jordão para evitar que os sobreviventes pudessem escapar. Todo o indivíduo que tentasse atravessar o rio era interceptado com uma pergunta: “você é efraimita?”. Evidentemente, a resposta era sempre não. Era aí que vinha a astúcia: os gileaditas exigiam que fosse pronunciada a palavra ‘Shibboleth’, que alguns traduzem por ‘espiga de grãos’, outros por ‘torrente de água’.
Como os efraimitas não conseguiam produzir o som de ‘ch’, pronunciavam ‘sibolete’. Assim, eram facilmente reconhecidos e assassinados. Ao todo morreram 42 mil efraimitas que não acertaram a pronúncia e a guerra acabou.
Linguisticamente, o vocábulo xibolete é usado para definir uma peculiaridade de pronúncia que atesta se um indivíduo faz parte ou não de determinada comunidade linguística. Com o tempo, o significado de xibolete se ampliou e passou a designar não apenas pronúncias, sotaques ou palavras e expressões, mas qualquer característica, ação, comportamento e crença que sirva para identificar o componente de um grupo.
Quando Freud, por exemplo, repreendeu Jung por diminuir o valor e a importância do sexo na Psicanálise, ele frisou: “O fator da sexualidade é o nosso xibolete”.
No Brasil, basta alguém usar termos ou frases como: ‘presidenta’, ‘todos e todas’; ‘petralha’ ou ‘Bolsomito’ para percebermos um xibolete que identifica o que ele acredita e em que grupo ideológico está inserido.
Uma expressão amazonense bem xibolete acontece quando o torcedor daqui celebra um gol e fala: ‘Pega!’. Isso já gerou confusão com pessoas de outros Estados, pois eles acharam que o amazonense estava torcendo para o goleiro adversário.
Longe de ser uma frase de apoio ao oponente, na verdade o ‘pega!’ expressa uma mistura de celebração com desforra contra o inimigo.
Aliás, desde a sua origem, a importância do xibolete é o seu uso para distinguir quem é a favor e quem está contra. É verdade que alguns dos ‘suspeitos’ gostam de usar palavras com a letra J, como ‘justiça’ e ‘jeitinho’, mas o mais eficiente xibolete é reparar nas ações.
Como os efraimitas, os ‘contrários’ sempre desaparecem quando você precisa e surgem para estragar a celebração de um triunfo. O ideal é não se apegar a isso e seguir para ter motivos para dizer: ‘Pega!’.