Ele foi o artista que enfrentou o dilema mais angustiante: escolher entre salvar a paixão da sua vida ou a sua grande obra-prima. Optar entre o amor e a imortalidade. Decidir entre sacrificar o poema mais importante do seu idioma ou deixar morrer a sua amada.
Luís Vaz de Camões (1524-1580) viveu uma vida agitada. Morou em locais como a África, Golfo Pérsico, Malabar, China e Camboja. Em 1547, no Marrocos, participou da guerra contra os Celtas e durante um combate perdeu o olho direito. Chegou a ser preso por não pagar dívidas, foi desterrado por um caso com a esposa de um nobre e exilado por escrever poemas para satirizar o governo de um figurão da época.
Num desses exílios, em Macau, desempenhando o cargo de “Provedor de Defuntos e Ausentes”, teria conhecido uma jovem chinesa chamada Tin Nam Men. Em chinês, o nome dela significa “Porta das Terras do Sul”, a Porta do Paraíso. Camões, porém, passou a chamá-la de Dinamene, em referência à ninfa que inspira os heróis em suas aventuras marítimas. A paixão pela chinesa e a saudade da terra natal teria inspirado Camões a escrever o poema épico considerado como o mais importante da língua portuguesa: “Os Lusíadas”.
Durante meses, ele se isolava numa pequena gruta em Macau (hoje chamada de gruta de Camões) para escrever o poema de 8.816 versos decassílabos (versos com dez sílabas poéticas) heroicos (a 6ª e a 10ª sílabas poéticas são tônicas) e sáficos (a 4ª, a 8ª e a 10ª sílabas poéticas são tônicas), 1.102 estrofes em oitava rima (rimas que seguem a lógica AB AB AB CC, ou seja, alternadas nos seis primeiros versos e paralelas nos dois últimos). Quando Camões terminou a composição, certamente percebeu que se tratava de uma obra-prima.
O relato conta que o casal embarcou em um navio chamado Nau de Prata em direção à Goa (Índia). Quando eles estavam perto da foz do rio Mekong (perto do atual Camboja), uma terrível tempestade fez com que o navio afundasse. E assim o poeta enfrentou o dilema da sua vida: salvar Tin Nam Men ou o único manuscrito de “Os Lusíadas”.
O certo é que Camões não tinha acesso a um pen drive ou qualquer cópia do alfarrábio. E naqueles poucos instantes que teve para escolher, decidiu salvar o poema. Logo, usou todo o seu fôlego para nadar até a margem – com apenas um dos braços, pois o outro estava ocupado segurando o calhamaço. Talvez tenha imaginado que teria tempo para voltar e resgatar Dinamene. Não teve. Tin Nam Men morreu afogada.
Posteriormente, já com o manuscrito seguro em suas mãos, Camões se arrependeu profundamente pela escolha. Vários poemas seus demonstram a tristeza pela perda de sua Dinamene. Diz um deles: “Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. (…) Roga a Deus que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou”.
Provavelmente sem a mesma dramaticidade da escolha de Camões, muitas vezes também enfrentamos impasses como: a carreira ou a família? Casamento feliz ou sucesso profissional?
Um dos mais famosos jogadores de futebol teve de lidar com questões como essas. Em sua biografia, Carles Rexach conta que a esposa de Johan Cruyff fez ele escolher entre ela e a carreira em três Copas seguidas. Nas Eliminatórias para a de 1970, Cruyff não participou do jogo decisivo contra a Bulgária porque foi para Milão com a esposa, Danny Coster, fazer compras como gesto de desculpas por algum erro seu. Não chegou a tempo para o confronto e a Holanda não se classificou.
Em 1974, na véspera da final contra a Alemanha, o jornal Bild Zeitung publicou a manchete “Cruyff, Champanhe e Garotas Nuas”, sobre uma suposta orgia na concentração com prostitutas germânicas. Enciumada e raivosa, Danny passou a madrugada discutindo com ele por telefone. Sem dormir, Cruyff foi mal na final e os alemães venceram.
Em 1978, o holandês optou por não participar da Copa. A hipótese mais famosa era que se trataria de um protesto contra a ditadura da Argentina. Cruyff contou também que houve uma tentativa de sequestro em que ele, a esposa e os filhos ficaram sob a mira de armas de fogo. O episódio teria feito o jogador pensar na família e desistir do mundial. Há ainda a versão que a esposa teria exigido que ele não fosse para a Copa na Argentina porque ainda não tinha esquecido o boato da orgia de 1974 e temia uma repetição do caso, dessa vez com as “perigosas latinas”. Muitos acreditam que, se ele tivesse ido, a Holanda é quem teria sido campeã ao invés da Argentina.
Cruyff nunca alcançou a glória de vencer uma Copa do Mundo, mas morreu bem casado. Camões faleceu solitário, mas terá sua obra lembrada para sempre. Qual deles, afinal, fez a melhor escolha?
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