Por Vívian Oliveira, do ATUAL
MANAUS – O debate sobre racismo ganhou destaque com o lançamento do trailer de “A Pequena Sereia”, na última sexta-feira (9). A protagonista, Halle Bailey, é negra. Para especialistas, o filme não deveria ser motivo de questionamentos sobre cor de pele, pois, sendo ficção, para o qual a etnia não faz diferença nenhuma, não há motivos aceitáveis para criticar a escolha da atriz.
“É tão absurdo o apego à cor da personagem que pouco se fala sobre seu talento, sua interpretação e seu canto. As reclamações e até os ataques vão além do imaginário acerca da sereia do primeiro filme, mas partem da não aceitação de uma princesa negra, como se aquele lugar não fosse para ela”, lamenta a pedagoga e escritora Liliane Mesquita, que é autora de livros infantis sobre racismo e formada pela Unigranrio (Universidade do Rio Grande, no Rio de Janeiro).
Mesquita afirma que, em obras como a live-action, com estreia prevista para 2023, a sociedade ganha muito ao ter uma “nova Ariel” nas telas. “Vibrei em vê-la e me emocionei com os vídeos das reações de tantas meninas assistindo ao trailer”, conta.
“A Ariel de Halle Bailey já ocupa um lugar importante e de representatividade positiva para crianças que se identificam e percebem que o seu lugar não é delimitado pela sua cor. Elas podem ser princesas, médicas, advogadas ou o que desejarem”, completa.
Para Glacy Ane, doutora em Antropologia Social pelo PPGAS/Ufam (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas), o mito da sereia é uma grande criação humana para trazer respostas à vivência e, no caso da polêmica com a atriz do filme, remonta às experiências sensíveis que pessoas negras vivenciam no cotidiano.
“É preciso compreender que o racismo está presente e precisa ser debatido. A representatividade negra dessa jovem atriz favorece essa discussão e nos mobiliza socialmente a compreender que a contemporaneidade ainda está em vias de constituição e destituição do racismo”, diz a antropóloga.
“Acredito que o filme ampliará essa rede de discussão mas não pela pele da personagem, e sim, pelo racismo declarado nas ofensas e ataques na representatividade de uma jovem mulher que se impõe e luta por mais espaço para atrizes negras”, destaca Glacy Ane.
Crianças e o racismo
“Nenhuma criança nasce racista, porém pode reproduzir atitudes discriminatórias por crescer em uma sociedade que tem enraizado o racismo estrutural”, afirma Liliane. “Nelson Mandela disse que ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele ou por sua origem, ou religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender”, completa a pedagoga.
Autora dos livros “Onde é o lugar de Dandara?”, de 2021, e “Qual é a sua forma?”, de 2022, que abordam temas raciais e de aceitação entre crianças e adolescentes, Liliane explica que, independentemente de identificar ações e expressões racistas, é necessário que o público infantojuvenil seja levado a refletir sobre o que vêm reproduzindo através de suas atitudes.
“Fica evidente o importantíssimo papel exercido por nós, educadores, pais e sociedade em geral, de levar conhecimento, refletir sobre o assunto e, principalmente, combater toda e qualquer atitude de racismo”, pontua.
A educadora também chama atenção para o acesso das crianças e pré-adolescentes às redes sociais, e ressalta que não se pode generalizar e afirmar que tudo nas redes sociais influencia negativamente, sobretudo para questões de diversidade.
“Há algumas questões primordiais a serem analisadas: o que nossos alunos ou filhos têm acessado? Eles recebem a nossa orientação? Deixá-los navegando numa rede imensa de informações é um grande risco, pois podem receber boas ou péssimas influências”, alerta.
“Há perfis e páginas que incitam ódio e desrespeito, mas há outros que levantam a bandeira de respeito à diversidade. Na atual sociedade, com a tecnologia cada vez mais presente no dia a dia, é necessário e urgente o diálogo com nossas crianças, para que consigam discernir o que acrescenta de forma positiva para suas vidas”, completa.
Conforme Liliane, há ainda o apelo, tanto das redes sociais como na vida real, de pertencer a um grupo. Segundo ela, alguns jovens acabam sendo influenciados negativamente e podem ter atitudes discriminatórias ou reagir com violência. “A busca por aceitação é grande, ainda mais em um mundo cheio de uma imagem falsa de felicidade e de padrões estéticos.”
Para a antropóloga Glacy Ane dos Santos, a influência externa das redes sociais obedece a estímulos internos. “Se o ambiente doméstico é racista, ele será processado em ambientes externos, como no caso das redes sociais. Há todo tipo de mobilização no mundo e o racismo é ainda um assunto delicado, todavia, primordial em nossas discussões”.
Respeito às diferenças e aceitação
Em seu novo livro “Qual é a sua forma?”, Liliane Mesquita aborda o tema da aceitação através da história de um círculo amarelo que busca ser aceito em uma comunidade diferente da sua forma. Ele vivia se espremendo em uma forma, justamente para ser aceito.
“Quando o círculo percebe que não há nada de errado em ser redondo e ser de outra cor, ele buscou mais do que aceitação. Ele queria o respeito para ser quem ele é. Foi a sua atitude corajosa que o levou a transformar a sociedade ao seu redor e parou de querer fazer parte de um grupo”, diz.
Em “Onde é o lugar de Dandara?”, Liliane conta que foi uma experiência profissional que a inspirou a escrever o livro, que conta a história de uma menina que vivia se perguntando onde é o seu lugar no mundo.
Mesmo sendo muito questionadora, o preconceito e a busca de padrões levaram-na a fechar-se para a vida e desistir de procurar a resposta que tanto seu coração desejava. Até que a chegada de uma professora [Liliane] transformou o seu modo de ver a vida .
Ao convidar a aluna para ser a princesa de uma peça teatral, ela respondeu que não poderia porque era negra e não existiam princesas de sua cor.
“Disse que ela era a princesa mais linda de todos os castelos e que a escolheria mil vezes. O seu lugar é onde está os seus sonhos e que jamais pode ser limitado por sua cor”, conclui.