Na busca de possibilidades de ressocialização para reinserção social dos presos, bem como de alternativas ao modelo de encarceramento inútil, violento e oneroso que se mantém no país, compreender a corporeidade prevalecente no sistema prisional é um ponto de partida relevante nessa difícil tarefa.
E o que se entende por corporeidade? O que caracteriza a corporeidade nos presídios? Qual a linguagem da corporeidade predominante no sistema prisional brasileiro?
Método
Entender essa linguagem que prevalece nos cárceres é o eixo para entender a corporeidade nos presídios do país. Requer não apenas deduções teóricas, mas conhecimento empírico dessa impactante faceta da realidade social. Tenho realizado muitas visitas em estabelecimentos penais, particularmente no estado do Amazonas. Embora tenha suas especificidades, o encarceramento praticado nessa unidade federativa não difere tanto do dos demais estados do país, tendo em conta o que tenho acompanhado como presidente do Conselho Penitenciário estadual. Obviamente, há realidades prisionais de maiores carências assistenciais, violência, deficiências logísticas e infraestruturais de um estado em relação a de outros. Contudo, em que pesem essas diferenças, isso não invalida tomar o caso do sistema prisional do Estado do Amazonas como um parâmetro para fins de estudo e análise sobre a corporeidade no sistema prisional brasileiro. Considerando esse propósito, acaba sendo uma amostra válida, afinal, são dezenas de unidades prisionais, que lidam todos os dias com uma massa de indivíduos encarcerados.
Noção de corporeidade
Por corporeidade, tomamos a noção exposta na obra de Marcel Mauss – “Sociologia e Antropologia: noção de técnica do corpo”, para quem o corpo deve ser pensado para além de sua dimensão biológica, embora seja parte integrante da natureza. Para Mauss, técnicas corporais são maneiras como as pessoas empregam seus corpos no interior de uma sociedade (como andam, sentam, comem, falam, olham, riem, gesticulam etc). Dito por ele mesmo: “maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo. Em todo caso, convém proceder do concreto ao abstrato, não inversamente.” (1974: p.401). Com isso, Marcel Mauss começou a demolir a separação entre natureza e cultura para formar uma nova concepção de corpo, fundamento da moderna noção de corporeidade.
Até o século XIX, via-se o corpo apenas como obra da natureza, dissociado da mente e mesmo uma prisão à alma, conforme Platão. O racionalismo de Descartes tratou de aprofundar a visão dicotômica: corpo x mente, natureza x cultura, físico x espiritual, de modo a distanciar ainda mais a sensibilidade da racionalidade. E o corpo acabou sendo entendido e tratado até o século XIX somente como realidade natural, algo que existia como uma máquina, a ser controlada e sujeitada a uma disciplina útil à produção e à exploração pela economia, pela política, pela vida social. Somente na segunda metade do séc. XIX, por meio de Mauss e de Nietzsche, retoma-se a ideia de um corpo uno, resultado da integração entre natureza e sociedade, físico e mental, razão e sensação. A visão dicotômica começa a ser questionada por uma concepção mais holística do corpo, da qual serão expoentes, no séc. XX, Merlau-Ponty e Michel Foucault.
Merlau-Ponty reconhece que, nesse mundo, a existência humana só é possível por meio de um corpo, que é mental e físico, pensamento e sentimento simultaneamente, muito mais que um mero conjunto de músculos e ossos, mas que é o próprio atuar sobre a sociedade e que revela diversos aspectos da vida em sociedade. No entendimento do fenomenólogo, “a cultura científica ocidental requer que tomemos os nossos corpos simultaneamente como estruturas físicas e como estruturas experienciais vividas – em suma, tanto como externos como internos, biológicos e fenomenológicos.” A articulação entre essas estruturas é a condição da corporeidade, que consiste numa nova concepção de corpo que integra a natureza à cultura, o material ao imaterial, o físico ao mental, o individual ao social. Uma interpretação holística de corpo que supera a velha visão dicotômica, abrindo caminho para uma nova compreensão de homem e de mundo.
Nesse sentido, Michel Foucault, radicaliza a crítica à interpretação dicotômica de corpo ao afirmar que “alma é a prisão do corpo”, em antagonismo a Platão e a Descartes, entendendo que a visão mecânica do corpo submeteu-o a uma disciplina e controle para os quais “o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.” Por isso, a necessidade de uma interpretação do corpo, que recupere sua dimensão holística, uma e libertária é tão essencial, o que se busca com a noção de corporeidade.
Compreender a corporeidade nos presídio é, por essa razão, algo que vai além do corpo físico e natural, alcançando elementos da cultura criminógena dos cárceres, cuja linguagem cotidiana, oral e não-oral, é instrumento relevante para análise da corporeidade no sistema prisional.
Contexto do cárcere
É importante lembrar do contexto sobre o qual estamos falando para compreender essa linguagem indicativa de elementos da corporeidade no cárcere.
No Brasil, segundo o relatório da CPI do sistema carcerário (2009), que realizou amplo levantamento da situação das cadeias e presídios brasileiros, os cárceres são depósitos de gente descartável e que funcionam de modo a perpetuar a barbárie. Prender, mesmo em condições deploráveis, é lucrativo e movimenta a economia de mercado, em especial com aqueles que foram excluídos dela, não têm mais espaço nela. Os estabelecimentos penais operam, via de regra, superlotados. A superlotação é motivo de brigas e rebeliões e, muitas vezes, de morte para abrir vaga na cela. Não há espaço mínimo para uma convivência segura nem saudável nos cárceres do país, muito menos para uma convivência ressocializadora, como preconiza a lei de execução penal brasileira.
Os presos são lançados a uma ociosidade que opera em favor do crime, em cárceres quase sempre comandados por facções criminosas. A estrutura e o espaço físico estão aquém do que estabelecem as normas nacionais e internacionais. Programas de educação ou qualquer outra ocupação para ressocializar os presos, quando raramente existem, não cumprem sequer razoavelmente o propósito nem se importam com a eficácia. A higiene, o trabalho e as condições de segurança nos presídios são precárias, assim como a assistência médica, quase sempre irrisórias dentro das unidades que compõem o sistema no país. Há unidades prisionais, como as de segurança máxima, em que a assistência médica é prestada apenas com o paciente algemado e em ala dominada por facção rival.
Diante dessas e outras precariedades, as facções criminosas se fortalecem, ofertando assistências, alguma segurança e certas “regalias” em troca do recrutamento para a economia do crime, ditando o ritmo e a intensidade da violência e das rebeliões, bem como apoiando as frequentes fugas. Drogas, armas, celulares e outras coisas conseguem entrar nas unidades do sistema prisional do país. Tais facções converteram, hoje, em fatores de insegurança não apenas dentro, mas principalmente fora dos presídios, praticando delitos arquitetados no interior dos cárceres. É praticamente impossível a qualquer preso, nos dias atuais, cumprir sua pena sem ser forçado a fazer parte dessas facções criminosas. Uma vez integrantes, passam a ser contar com “o bônus e o ônus dessa fidelização” à facção.
De acordo com levantamento do CNJ, divulgado recentemente, no dia 04/06/2014, o Brasil subiu mais uma posição no lamentável ranking dos países com maior população carcerária. Agora é o terceiro Estado com mais gente encarcerada. Um nítido exemplo de que apenas política repressiva, voltada para o encarceramento em massa, não é sinônimo de segurança pública.
Ultrapassamos a Rússia, que conta com mais de 680 mil presos, alcançando a indesejável cifra de mais de 715 mil presos. Para tanto, bastou contabilizar um número que antes não era levado em consideração no computo total de presos no Brasil: 148 mil pessoas em prisão domiciliar. Somados aos demais de 567 mil encarcerados, chegou-se à nova estatística. Em matéria de população carcerária, ficamos agora atrás somente dos EUA (mais de 2,2 milhões de presos) e da China (com cerca de 1,7 milhão de encarcerados).
A quase totalidade dos encarcerados é constituída de pessoas pobres, jovens e de baixa escolaridade. Muitos nem deveriam mais estar na unidade prisional, expostos a tantos riscos capitais, pois são presos provisórios ou ainda aqueles cujo excesso de prazo já lhes confere o direito a deixar o cárcere. Esse último aspecto evidencia a morosidade do processo judicial criminal e a dificuldade de satisfação da garantia à assistência jurídica.
Um preso custava ao Estado brasileiro, em 2007, entre R$ 1.800,00 e R$ 2.100,00 mensais, cerca de dez vezes mais do que se gasta com uma criança na escola pública.
O resultado do atual modelo de sistema prisional em vigor no país tem sido a produção de seres embrutecidos, truculentos, ensandecidos, bipolares, constituindo-se numa eficaz fábrica de doentes, psicopatas, doidos, latrocidas, homicidas e outros desviantes potencializados pelas condições humilhantes e degradantes de unidades do sistema prisional do país.
Outra consequência é uma espécie de assepsia prisional, sob as vistas grossas do Estado e da sociedade, decorrente do número de mortos nas prisões brasileiras: em 2007, foram 1.250 mortes, segundo levantou a CPI que investigou o sistema carcerário. Uma média anual de três mortos ao dia. Agentes carcerários são também surpreendidos ocasionalmente, sendo por vezes vitimados de modo fatal.
Um sistema prisional bastante oneroso à sociedade e que radicaliza na linguagem do descarte, da violência e do crime, potencializando o indivíduo na carreira do crime, sendo fator de mais insegurança pública do que de garantia de liberdade e do usufruto de outros direitos pela sociedade.
Corporeidade nos presídios
A linguagem predominante nos presídios nos diz muito acerca da corporeidade que se reproduz nos mesmos.
Nota-se, sob distintas formas de expressão, a prevalência de uma linguagem da violência, inclusive como forma de reforçar os valores da chamada cultura criminógena ou ambiência do crime. Uma linguagem da provocação, da sujeição e da dominação pela imposição da força e do medo. Linguagem essa que alimenta e pereniza o estado de ameaça e de terror dentro da unidade prisional, decorrendo disso o poder de mando das facções e seus “lideres”, chamados “xerifes” ou ainda “prefeitos”, os quais comandam assim um estabelecimento carcerário.
Esse chefe, quase sempre, representando uma facção criminosa, define e reproduz o bônus e o ônus à população carcerária, recorrendo à linguagem da intimidação, da submissão e da violência. A população carcerária termina por “aceitar” essa imposição da violência, conferindo assim certa “legitimidade” à essa dominação violenta e ilegítima.
Essa linguagem da violência dos presídios reproduz não apenas a cultura do crime do interior dos cárceres, como também de fora deles, tal como ocorre extra-muro, na sociedade, reforçando, com isso, os “valores” da economia e da prática do crime. Eles se manifestam de diversas formas, tais como:
a) culto à força, ao medo e à obediência pela força com vistas à sujeição e a imposição de um chefe de facção ou grupo;
b) culto ao armamento e ao suposto poder das armas;
c) criar uma identidade (personagem ou máscara) vinculada a um delito grave e que reforce a ideia de elemento perigoso junto aos demais indivíduos da comunidade de presos;
d) poder de dispor e consumir o corpo do outro, inclusive na condição análoga a de escravo, considerando mesmo a posse e uso sexual do corpo do outro. Ocorre, muitas vezes, em face disso, a redefinição da orientação sexual de homens e de mulheres;
e) ostentação de símbolos de status e poder no cárcere: joias, drogas, celulares, tatuagens, tipos de cabelo, trejeitos, vocabulário e outros códigos internos diversos;
f) busca de evidenciar poder de intervenção sobre o próprio corpo, incluindo processos degenerativos e deformações corporais.
As condições do contexto dos cárceres no Brasil, expostas anteriormente, concorrem, sobremaneira, no sentido de agravar situações e cenários nos quais se manifestam essa linguagem da violência e da cultura criminógena, que permitem caracterizar a corporeidade no interior das unidades prisionais.
Considerações conclusivas
A linguagem, seja oral seja comportamental, é um processo social imprescindível como instrumento indicativo das características da corporeidade do sistema prisional.
Ela revela muito sobre as condições, os valores e as atitudes individuais nos cárceres, assim como sobre os valores da cultura criminógena predominante nos presídios.
A compreensão da corporeidade nos estabelecimentos prisionais é de grande relevância para se nortear a busca processos de ressocialização das pessoas encarceradas, bem como tendo em vista a formulação de intervenções gerenciais nos mesmos, no sentido de implantar programas e ações no interior dos cárceres, voltados à população de presos, sejam eles provisórios ou condenados.
Apesar de tudo, o objetivo maior, a utopia ou o ideal mesmo seria que não precisasse a sociedade de um sistema prisional nem insistisse no modelo que adotado. Muito já se postulou sobre o assunto e sobre a completa falência do mesmo para ressocializar encarcerados com vistas à reinserção social. Entretanto, mesmo sendo conhecedores de toda onerosidade, violência, risco e ineficácia dos presídios, talvez porque a sociedade não queira pôr outra coisa em seu lugar, ela continua sendo a principal medida penal. A prisão não é coadjuvante, mas atriz principal na cena do sistema de justiça criminal no país.
Talvez por conta disso ainda ressoem, por fim, não menos esclarecedoras do que escandalosas as palavras de Michel Foucault, em sua “Microfísica do Poder”, quando declara que:
“Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica de delinquentes, mas os delinquentes são úteis no domínio econômico como no político. Os delinquentes servem para alguma coisa. (…)” (1992; p 131-132)
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