A expressão mais curiosa e certeira do futebol não foi criada para astros ou protagonistas. É em homenagem aos jogadores coadjuvantes que surgiu o termo: carregador de piano.
É uma imagem forte. Se fosse carregador de guitarra ou de violino não teria o mesmo efeito. Afinal, o esforço empreendido para carregar uma guitarra ou violino é muito menor que o para um piano. Um exemplar de cauda pesa até 700 quilogramas. Além disso, não basta apenas força física para a tarefa. Por causa do formato do instrumento é preciso ter jeito para no processo de transportar o piano não danificá-lo. E depois de todo o trabalho cuidadoso, nunca se ouviu falar de um carregador aplaudido. Isso fica para o pianista.
Não foi do nada, porém, que fez o criativo cronista criar a expressão para celebrar os atletas esforçados, os trabalhadores, os “operários”, os táticos, os raçudos, “os que não aparecem para a torcida”, mas que são indispensáveis para o funcionamento da equipe.
Segundo os historiadores, até o início da década de 1940, antes dos caminhões dominarem o mercado, eram grupos de carregadores de pianos os responsáveis pelo transporte do delicado instrumento. Algumas vezes, percorrendo e atravessando povoados e cidades. Boa parte deles, eram descendentes de escravos.
“Havia grupos ou turmas especializadas, de seis ou oito homens, conforme o caso, sob a direção de um deles, espécie de mestre, chefe ou capataz, que contratava a mudança e dirigia o serviço, assumindo a responsabilidade. Tiravam o piano da casa com todo o cuidado, punham-no à cabeça, sob rodilhas de pano (muitas vezes o próprio paletó, à falta de coisa melhor…) e, a um sinal do chefe, iniciavam uma espécie de marcha militar, passo cadenciado, ‘para tornar o peso mais maneiro’, diziam no Recife; ‘para não desafinar o instrumento’, ouvi dizerem muitas vezes em Maceió”, relatou o jornalista Mário Melo, na Folha da Manhã, de Recife, de 17 de março de 1947.
E não era apenas por causa da quebra da rotina que, em alguns povoados, a passagem deles era um acontecimento. Além da insólita cena de homens com um pesado instrumento sobre suas cabeças e caminhando em um mesmo passo, eles também cantavam ritmadas canções.
Em dois de seus mais importantes livros, o sociólogo Gilberto Freire registrou algumas cantigas dos carregadores de piano. No clássico Casa Grande e Senzala: “Os pianos não se carregavam outrora sem que os negros cantassem: É o piano de ioiô, É o piano de iaiá”. No livro Ingleses no Brasil: “Não se pesca mais de rede, Não se pode mais pescar, Que já soube da notícia, Que o inglês comprou o mar”.
Alguns carregadores de piano, tinham um repertório variado contando até com músicas de entrada para quando chegavam a um povoado. “A água é para se beber, o ferro para se engomar, Abre alas, minha gente, Que o piano quer passar!”.
O transporte de piano só era feito em completo silêncio se a dona do instrumento fosse viúva. O que, pela tradição, era demonstração de respeito. O normal, entretanto, era todo o trajeto ser acompanhado de cantigas, que depois eram repetidas e guardadas pelo povo. Provavelmente, as canções amenizavam o peso do piano e da vida que tinham que carregar.
Uma ironia: os que carregavam piano jamais aprendiam a dominar o instrumento, mas, ainda assim, demonstravam talento artístico e levavam música por onde passavam. Ainda hoje para essa classe social, a gíria “tocar piano” significa apenas “ser preso”.
O fato é que no esporte, carregadores de piano são tão decisivos, que é possível você lembrar de equipes vencedoras que não possuíam nenhum artista. Agora, jamais houve uma equipe campeã que não tivesse pelo menos um carregador de piano em sua composição.
Não é só no futebol, basta pensar um pouco para recordar das pessoas que se sacrificaram, “levaram o piano nas costas” e “pegaram no pesado” para tornar nossas vidas mais leves.
Lembrar dos carregadores de piano não significa ignorar o pianista. Todos temos que ser protagonistas das nossas existências. É preciso dedicação para saber apurar o ouvido e escutar bem. É preciso repetição, tentar de novo, para aprender a dominar as mãos e executar ações precisas. É necessário ser merecedor dos aplausos.
E quando as palmas do reconhecimento vierem, é indispensável “ficar pianinho” e não permitir que o alarido nos faça esquecer que: para você ter a oportunidade de brilhar no palco, alguém foi o carregador do piano.