Por Renata Galf, da Folhapress
SÃO PAULO – “Eu sou, realmente, a Constituição”. A frase de caráter autoritário foi dita por Jair Bolsonaro (PL) um dia depois de discursar em ato pró-intervenção militar em abril de 2020.
Na ocasião, o mandatário do país buscava negar que sua conduta na véspera tivesse conotações golpistas. “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República”, afirmou.
Diante da ascensão de líderes populistas autoritários ao redor do mundo, nos últimos anos estudiosos têm se debruçado sobre como governantes eleitos vêm atuando para erodir democracias, sem que, para tanto, seja preciso um golpe propriamente dito.
Se líderes como Viktor Orbán, na Hungria, e Hugo Chávez, na Venezuela, fizeram isso por meio da alteração de leis ou da Constituição, a hipótese levantada por três pesquisadores brasileiros é a de que Bolsonaro, ao atuar sem o apoio do Legislativo, amplia o repertório de estratégias empregadas por líderes populistas autoritários.
“Ele busca uma outra estratégia que é o que a gente chamou de infralegalismo autoritário, ou seja, a subversão das instituições, o abuso das prerrogativas”, diz o diretor da FGV Direito-SP, Oscar Vilhena, que é um dos autores da pesquisa.
Juntos, Vilhena, a mestre em direito e pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV-SP Ana Laura Barbosa e o também professor da entidade Rubens Glezer mapearam a atuação de Bolsonaro no Congresso, em 2019 e 2020.
“O método como um todo, o que ele faz, o que a gente está o tempo todo mapeando é esse braço de como, sem alterar a lei, sem alterar a Constituição, existe uma erosão não só da democracia mas da institucionalidade”, diz Glezer, que é doutor em teoria do direito e coordena o Supremo em Pauta. “É uma parte do populismo também erodir as instituições e garantir, com isso, que as próprias leis que ainda existam vão deixando de ser aplicadas”, diz.
O artigo será publicado neste ano em livro do Projeto sobre Estado de Direito e Legalismo Autocrático (em inglês, PAL), que envolve acadêmicos de diferentes países e universidades.
Os pesquisadores elencam estratégias que integrariam o que consideram ser parte do método de Bolsonaro. E afirmam que o presidente, ao mesclar pelo menos duas delas, abre caminho para ataques a pilares da Constituição, como o pluralismo e os direitos fundamentais.
Entre as estratégias está a desvirtuação de leis e descaracterização de políticas públicas, sem que elas sejam revogadas, mas por meio de decretos e mudanças administrativas que teriam como objetivo regulamentar leis. Incluem também medidas para diminuir a participação social.
A pesquisa aponta que Bolsonaro foi o presidente que mais editou decretos (939) em seus dois primeiros anos de mandato comparado aos de seus antecessores.
Apesar de o valor não ser tão distante, por exemplo, ao primeiro governo Lula (766), os pesquisadores ressaltam que a finalidade dos decretos de Bolsonaro é distinta, atingindo colegiados de modo desproporcional.
Diferentemente de projetos de lei, decretos não passam pelo crivo do Legislativo, tendo efeito após sua publicação pelo presidente. Eles servem para concretizar obrigações previstas em lei.
Na marca de cem dias de mandato, um decreto de Bolsonaro extinguia, sob o pretexto de cortar custos, todos os órgãos colegiados ligados à administração federal. Tal medida foi, em parte, barrada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
“Olhando para a agenda dele, dá para ver que as coisas que ele busca pela via Legislativa também são muitas vezes triviais”, avalia Ana Laura. “Ele não tem uma ampla agenda no Poder Legislativo e daí a necessidade também de olhar para o restante da agenda”, explica.
Os pesquisadores elencam estratégias que buscam frustrar os objetivos de determinados órgãos, como a nomeação para cargos de comando de pessoas contrárias às políticas que vão chefiar.
Exemplos são o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que já chamou o movimento negro de “escória maldita” e o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.
Incluem neste rol ainda os cortes orçamentários ou a não execução dos valores previstos, além do estímulo à paralisação de órgãos, por exemplo, ao deixar cargos vagos por longos períodos.
Também a prática de Bolsonaro de dar ordens informais, como em suas lives semanais, ou de punir servidores que contrariem tais vontades são apontados como parte do método.
“Ele não respeita os limites institucionais. Parece que o que ele quer é exercer o seu desejo sem limites. E o que o constitucionalismo, o que a democracia liberal faz, é impor limites ao poder”, diz Glezer.
Eles consideram, porém, que os dados dos dois primeiros anos do governo de Bolsonaro mostram que o Legislativo foi em certa medida uma das barreiras a um projeto autoritário de Bolsonaro, tanto ao não aprovar como ao não pautar projetos de interesse do Executivo.
A taxa de dominância, que indica se a agenda do Congresso está ou não sendo pautada pelo presidente da República, foi 30,5% nos dois primeiros anos de mandato de Bolsonaro, pior taxa entre seus antecessores.
O valor só se aproxima do primeiro mandato de Dilma, em que o índice foi de 32,6%. Na sequência, a menor taxa é do segundo mandato Lula, de 47,9%.
Também na taxa de sucesso, que aponta o quanto dos projetos apresentados pela Presidência foram aprovados, Bolsonaro é dono do pior índice, de 31,3%. Entre seus antecessores, a segunda pior taxa é do segundo mandato de FHC, porém, ainda assim distante: 47,1%.
“Todos os indicadores são de que esse é o Congresso mais conservador que já foi eleito depois de 88, mas ainda assim ele trava uma pauta hiperconservadora do Bolsonaro ou da base do Bolsonaro”, avalia Vilhena.
Já em relação a medidas provisórias editadas, Bolsonaro não só apresentou o maior número absoluto, com 156 MPs em dois anos de governo, como é o governo em que este tipo de medida representa a maior fatia de sua atuação legislativa.
Os pesquisadores identificaram que MPs foram 75% das propostas apresentadas por Bolsonaro em 2019 e 2020. Foram desconsideradas no cálculo as propostas orçamentárias.
Criadas pela Constituição de 1988, as MPs têm força de lei e entram em vigor após sua edição. Contudo, para serem convertidas em lei, de fato, precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso.
Bolsonaro viu a maior parte de suas MPs perder a validade. De acordo com a pesquisa, 37,8% das medidas do período analisado foram convertidas em lei. Até então, a menor taxa era do primeiro mandato de Dilma (61,7%).
Em 2019 congressistas chegaram a apresentar uma PEC que visava restringir a cinco o número de MPs que um presidente poderia editar a cada ano. Uma das críticas é que o uso indiscriminado está em desacordo com a Constituição, que prevê a medida para casos de relevância e urgência.
O mandatário figura ainda como recordista em número de vetos derrubados pelo Congresso no período analisado. Com dez vetos, Bolsonaro está distante de seus antecessores – a pior marca era de Temer, com três vetos.
De dez Propostas de Emenda à Constituição aprovadas em 2019 e 2020, apenas uma – a reforma da Previdência – foi apresentada por Bolsonaro. Foi aprovada, porém, por vontade política do Congresso.
À época da tramitação, o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez críticas à falta de articulação de Bolsonaro, que em resposta afirmou que governava “sem acordos político-partidários”, atribuindo os atritos a parlamentares que não queriam largar a “velha política”.
Ao longo de 2021, o cenário mudou. Bolsonaro se aproximou do chamado centrão, em movimento que envolveu o apoio à candidatura de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara e a nomeação de Ciro Nogueira (PP-PI) como ministro da Casa Civil, culminando com sua filiação ao PL.
Além disso, as emendas de relator aumentaram o poder do Congresso sobre o Orçamento e têm sido usadas como moeda de troca para negociação de votos.
Para os pesquisadores, ainda é cedo para dizer se há uma inflexão no modo como Bolsonaro busca implementar sua agenda ou se é apenas uma forma de blindagem contra os pedidos de impeachment que se acumulam na gaveta de Lira.
“O que nós constatamos, nesses dois primeiros anos, é isso: há no centro do poder uma figura autoritária que é o Bolsonaro. Ele busca a erosão do regime. Só que ele encontra mais barreiras do que em outros países foram encontradas”, disse Vilhena.