Da Folhapress
SÃO PAULO – Quatro anos após as audiências de custódia saírem do papel, a maioria das pessoas ainda é enviada pela Justiça para o cárcere em prisão preventiva. Menos de 1% tem autorização para responder ao processo sem cumprir medidas cautelares.
Em 56% dos casos, a palavra do policial é a única prova de acusação -e há queixas de que relatos de tortura estão sendo negligenciados.
O caso de São Paulo chama a atenção. Em 2017, as prisões preventivas representavam 50% das decisões. Agora, somam 65%. Nenhuma consegue liberdade irrestrita.
Os dados estão no relatório “O fim da liberdade”, elaborado pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) em parceria com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e antecipado pela Folha de S.Paulo. O material será apresentado no fim da manhã desta quinta, 29.
Trata-se do maior levantamento já feito sobre as audiências de custódia no Brasil. Foram acompanhados 2.774 casos de abril a dezembro de 2018, em 13 cidades de nove estados -São Paulo, Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
As audiências de custódia foram regulamentas pelo CNJ em 2015, em cumprimento ao compromisso assumido pelo país na ratificação do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Desde então, o encontro entre a pessoa presa e o juiz deve ocorrer em até 24 horas após a comunicação da prisão. É o momento em que o magistrado avalia se a detenção atendeu aos requisitos legais, se a pessoa presa foi vítima de maus-tratos ou tortura e, ainda, se precisa responder ao processo em prisão preventiva -que deve ser a exceção, não a regra.
Antes, a avaliação do juízo era feita só na audiência de instrução, meses depois da prisão.
Na prática, no entanto, 57% das audiências no país ainda resultam em prisão preventiva. O índice chega a 67% nos casos em que o único crime é o tráfico de drogas. Isso acontece mesmo que o tráfico seja um crime sem violência, grave ameaça nem vítimas -fundamentos previstos no Código de Processo Penal para que decisão do tipo seja decretada. Outros critérios são quando há risco de o acusado fugir, cometer novos crimes ou atrapalhar a instrução probatória.
Hoje, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com 812 mil detentos, número que cresce 8% ao ano. Cerca de 42% não têm condenação. De forma geral, o sistema é superlotado e dominado por facções criminosas. No fim de julho, a maior rebelião do ano deixou 62 mortos -sendo 16 decapitados- numa unidade prisional em Altamira, no Pará.
Para quem não vai responder ao processo atrás das grades, a imposição de medidas cautelares, como comparecimento em juízo, proibição de ausentar-se da comarca e recolhimento domiciliar noturno, é a regra. Em geral, mais de duas medidas são aplicadas. Só 0,89% consegue liberdade irrestrita.
O relatório considera tal dado alarmante. “O uso recorrente de medidas cautelares, embora seja uma alternativa à prisão e implique menor interferência do Estado na vida do cidadão, passa a ser uma muleta utilizada pelos magistrados”, afirma.
O comparecimento periódico em juízo, por exemplo, “desconsidera as dificuldades que pode representar a quem não tem renda fixa e precisa arcar com o ônus do deslocamento até o fórum e com as faltas no trabalho”, continua o texto.
O vice-presidente do IDDD, Hugo Leonardo, afirma que as audiências não estão privilegiando princípio de não culpabilidade. “É parte de uma cultura punitivista, que faz com que juízes achem razoável a punição cautelar, descumprindo a Constituição”, diz.
Para ele, ao invés de atacar as causas de criminalidade, a Justiça “aumenta o caos nas penitenciárias e as fileiras das facções. É a criminalização da pobreza, que acirra a desigualdade social”.
Segundo o presidente da seção do Rio da OAB (Ordem dos Advogado do Brasil), Luciano Bandeira, a audiência “não pode ser uma formalidade cumprida de forma burocrática”, afirma. “Todos precisam estar envolvidos no espírito da sua finalidade que é a de manter na prisão apenas aqueles que podem produzir dano efetivo.”
Patrícia Alvares Cruz, corregedora do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais), que coordena as audiências de custódia na capital paulista, refuta o argumento. Segundo ela, os magistrados têm respeitado os direitos fundamentais dos réus, como o de se manter em silêncio e o de ampla defesa.
Mas, desde que assumiu e trocou a equipe de 12 juízes, em janeiro de 2018, a prioridade do órgão mudou. “O que existe de diferente é a preocupação com outro direito constitucional e fundamental: o da sociedade de ter garantida a segurança pública. A gente tem que contrabalançar e em cada caso decidir qual direito deve prevalecer”, afirma.
Cruz também aponta uma dissonância na compreensão da lei. “O que existe hoje é uma cultura de que o tráfico de drogas é um crime banal. Não é. A lei equipara o tráfico ao crime hediondo. Sem a punição dos traficantes, nunca vamos combater as organizações criminosas”, afirma a juíza.
Ela ressalta que neste ano os principais indicadores criminais tiveram queda em São Paulo, como homicídio, latrocínio, roubo e furto de veículos. Segundo a magistrada, o resultado é diretamente ligado ao número de pessoas presas e apreendidas, que cresceu 6% de janeiro a julho, de 98 mil para 103 mil.
Além disso, cabe ao Executivo, e não ao Judiciário, atentar à superlotação no sistema penitenciário, diz.
Tortura e algema
Segundo o relatório do IDDD, o ambiente das audiências de custódia não favorece denúncias de violência ocorridas durante a prisão.
Isso porque 83% das pessoas estavam algemadas durante o cara a cara com o juiz no período analisado. No Sudeste e Centro-Oeste, o uso é um padrão. Além disso, na quase totalidade (96%) dos casos havia agentes de segurança na sala –em algumas cidades, a presença chegava a quatro policiais.
De acordo com a Súmula Vinculante 11 do STF (Supremo Tribunal Federal), o uso de algemas é excepcional e lícito só em casos “de resistência e fundado receio de fuga ou perigo à integridade física própria ou alheia”.
O número de agentes e o porte explícito de armamentos, diz o texto, “têm o efeito óbvio de intimidar eventuais vítimas”.
A corregedora do Dipo afirma que, na prática, o aparato de segurança existe porque é difícil analisar um risco de fuga. “O juiz anuncia se vão ficar presos ou soltos e muitas vezes os autuados ficam revoltados, xingam. Se a gente não tiver ele algemado e escoltado por um policial, ele vai sair pela porta e vai embora.”
Ela contabiliza de 100 a 150 réus ouvidos por dia no Fórum Criminal da Barra Funda, na região central da capital paulista, e 19 PMs destacados para acompanhá-los.
Os números do relatório expõem ainda pouco interesse em saber de ocorrência de tortura no momento da prisão e de dar encaminhamento aos relatos. Os pesquisadores anotaram que 13% das pessoas não foram indagadas sobre violência policial. Entre os que foram, 26% responderam que sim, haviam sofrido agressões, sendo a Polícia Militar apontada como agressora em 76% dos casos.
A ocorrência de violência que caracterize tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes torna o flagrante ilegal. Ainda assim, o juiz só relaxou o flagrante em 2% das audiências, ou 56 em números brutos. Entre os quase 3.000 casos analisados, em apenas cinco o relato de violência da pessoa custodiada embasou o relaxamento.
Mesmo com o relato, o Ministério Público não pediu encaminhamento da denúncia em 74% dos casos. Em menos de 1% houve determinação de instaurar um inquérito policial.
O relatório mostra ainda que o testemunho do policial que efetuou a prisão é a única prova de acusação em 56% dos casos. Esse índice sobe para 90% nos casos de tráfico de drogas.
Nem todos os estados seguem à risca a resolução do CNJ.
Em cidades como Rio e Porto Alegre, o encontro da pessoa presa com a autoridade judicial acontece no presídio, e não no fórum. Na capital do RS a primeira análise acontece com base em documentos (autos de prisão em flagrante e boletins de ocorrência) e só se encontra com o juiz quem já teve a prisão preventiva decretada.
Em Brasília, Belo Horizonte, Rio, Recife, Olinda e São Paulo há espaço reservado para a conversa entre presos e defensores -nos demais locais pesquisados, não.
O documento afirma que quase 70% dos casos envolvem crimes não violentos e mostra o perfil predominante entre os custodiados, que espelha o retrato da população prisional brasileira. Homens são 91%, e dois em cada três deles têm até 29 anos. Os negros também são a maior parte (64%). Não cumpriram o ensino fundamental 35%, e não têm renda fixa 38%.