Por Géssica Brandino, da Folhapress
SÃO PAULO – Era para ser uma entrevista de emprego em um escritório de advocacia na capital paulista. Ao entrar na sala, a advogada Ana Carolina Lourenço conta ter sido olhada da cabeça aos pés pelo dono da banca. Ele fechou a porta e avançou na direção dela.
A profissional escapou do abuso após gritar por socorro. O episódio aconteceu em 2013 e por meses Ana Carolina relata que teve medo de participar de processos seletivos.
Um ano antes, ao trabalhar em um escritório que só contratava mulheres, ela diz ter visto várias colegas serem assediadas sexualmente pelos chefes homens, que davam vodka e energético para as funcionárias após as 22h.
Depois das duas experiências, Ana Carolina, que é mulher negra, enfrentou discriminação ao fazer o processo de transição capilar, em 2018. Um dos sócios da banca onde trabalhava soltou expressões de espanto ao vê-la com os cabelos trançados.
“A gente precisa dar nome ao assédio, porque em várias experiências que tive ao longo da vida achava que era natural. Precisamos saber o que é para poder combater”, diz ela, hoje vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).
No último dia 3, o presidente Lula (PT) sancionou uma lei que altera o Estatuto da Advocacia para tornar infração ético-disciplinar o assédio moral, assédio sexual e a discriminação contra estagiários, advogados e profissionais a serviço da advocacia.
Casos como os relatados por Ana Carolina cometidos a partir dessa data poderão ser punidos com suspensão por um período de 30 dias a um ano, conforme decisão do Ted (Tribunal de Ética e Disciplina) das seccionais da OAB.
O texto de autoria da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ) foi idealizado pela Comissão Nacional da Mulher Advogada da ordem, presidida pela advogada Cristiane Damasceno.
Ela afirma que ainda não há dados sobre o problema. No último ano, a OAB lançou um canal para denúncias, mas Cristiane diz que ainda há muita desconfiança sobre se os episódios serão punidos.
“Tivemos quase 50 denúncias que encaminhamos aos nossos tribunais de ética para que eles averiguassem se aquilo poderia ser enquadrado em uma infração genérica que existia antes de a lei entrar em vigor. Isso ficava muito por conta dos julgadores. Com a chegada da lei, vamos ter a estatística da chegada dos requerimentos”, diz.
A advogada explica que o enquadramento era feito por meio da infração de “crime infamante”, que abrange de delitos contra a honra a casos de homicídio e falsificação.
“Se a pessoa que julga entende que assédio não é um crime infamante, porque é uma expressão genérica, acabava que não tinha o assediador punido. Essa era a nossa grande discussão”, afirma.
Quem sofre assédio ou discriminação deve reunir provas e fazer um requerimento que passa primeiro pela comissão de admissibilidade das seccionais, onde será verificado se a denúncia tem indícios de autoria e materialidade para gerar a responsabilização.
Os casos aceitos são encaminhados para um relator do tribunal de ética, que vai intimar o acusado para apresentar a defesa. Depois disso há uma primeira decisão, mas recursos podem ser apresentados ao plenário do tribunal de ética do estado e, depois, para a OAB nacional.
O Brasil tem mais de 1,3 milhão de advogados cadastrados e quase 13 mil estagiários de direito. As mulheres representam mais da metade dos dois grupos.
Em 2021, pesquisa Datafolha mostrou que um terço das advogadas relatava já ter sofrido assédio sexual ligado a seus locais de trabalho, por parte de colegas, chefes, clientes ou outros.
Um estudo do grupo de pesquisa Carmin Feminismo Jurídico, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, em abril de 2022, obteve 191 relatos de advogadas de todos os estados por meio de um questionário online.
Dentre as entrevistadas, quase 81% disseram já terem se sentido ameaçadas no exercício da profissão em razão do próprio gênero ou da cliente.
Uma das responsáveis pela pesquisa, a advogada Soraia Mendes afirma que o conceito de lawfare de gênero foi criado por ela e pela advogada Isadora Dourado para mostrar o uso de processos judiciais para intimidar a atuação de mulheres na área.
“Assediar as advogadas e colocá-las em uma condição de menosprezo compõem o dia a dia do exercício da advocacia para as mulheres”, diz.
Em São Paulo, a advogada Ana Lúcia Dias, que atua com perspectiva de gênero na defesa de mulheres e mães em processos na área de família e cível, conta que teve o endereço e telefone pessoais expostos em abril pela defesa de um ex-cliente. Ela também passou a responder a processos na esfera criminal e no tribunal de ética da OAB.
“Isso afetou muito a mim e aos meus filhos. Como você dorme sabendo que tem uma pessoa na rua com o endereço da sua casa?”, diz.
Ana Lúcia conta que o caso tem sido acompanhado pela comissão de prerrogativas da OAB São Paulo.
Neste ano, a seccional recebeu três denúncias de assédio por meio do canal 24 horas “advocacia sem assédio”, em parceria com a empresa Deloitte. A comunicação pode ser feita pelo site, por meio de email ou por telefone.
“Ainda é um universo pequeno perto do que a gente sabe que acontece no dia a dia do exercício da profissão. Com essa ferramenta e a alteração no nosso estatuto, a gente espera acompanhar melhor esses casos de assédio e dar suporte às advogadas”, diz a secretária-geral da OAB-SP, Daniela Magalhães.
Outra expectativa com a nova lei é a celeridade dos processos, que costumam demorar anos, diz a advogada.
Além da suspensão, Daniela afirma que as denúncias são enviadas à Caasp (Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo), para que a vítima receba atendimento psicológico, e ao Ministério Público, para responsabilização no Judiciário.
A criminalista Carolina Carvalho de Oliveira, sócia do escritório Campos & Antonioli Advogados Associados, afirma que o assédio e a discriminação podem gerar consequências na esfera criminal, cível e, em determinadas situações, na trabalhista. A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, pela vítima ou mesmo pela OAB.
Testemunhos, perícias e gravações lícitas podem servir como prova, especialmente em casos mais difíceis de punir, acrescenta.
“O assédio moral e a discriminação são atos que podem não deixar vestígios aparentes e de fácil comprovação, ao contrário do que, na maioria das vezes, acontece em um caso de assédio sexual”, diz Carolina.
O que diz a lei nº 14.612/2023:
Assédio moral: a conduta praticada no exercício profissional ou em razão dele, por meio da repetição deliberada de gestos, palavras faladas ou escritas ou comportamentos que exponham o estagiário, o advogado ou qualquer outro profissional que esteja prestando seus serviços a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de lhes causar ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física, com o objetivo de excluí-los das suas funções ou de desestabilizá-los emocionalmente, deteriorando o ambiente profissional.
Assédio sexual: a conduta de conotação sexual praticada no exercício profissional ou em razão dele, manifestada fisicamente ou por palavras, gestos ou outros meios, proposta ou imposta à pessoa contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual.
Discriminação: a conduta comissiva ou omissiva que dispense tratamento constrangedor ou humilhante a pessoa ou grupo de pessoas, em razão de sua deficiência, pertença a determinada raça, cor ou sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária, religião ou outro fator”.
Punição: suspensão do infrator do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de 30 dias a 12 meses.