O Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento Básico (SNIS 2016) revela que a cobertura de abastecimento de água em Manaus alcança 87,79% numa cidade que é banhada pelo maior reservatório hídrico do planeta. Quando se fala do atendimento de esgoto, a situação ainda é mais grave, pois a cidade possui somente 10,18% de cobertura deste serviço. É notável o baixo nível de desempenho da concessão privada, que atualmente é gerida pela Aegea Saneamento e Participações, grupo empresarial, com forte presença do capital estrangeiro (Fundo Soberano de Cingapura). Este desempenho coloca Manaus na 5ª pior posição entre os grandes municípios do Brasil no que se refere àqueles serviços essenciais.[1]
Estes dados não mostram somente o equívoco da privatização destes serviços, denunciada inúmeras vezes pela população e órgãos públicos (Procon-AM, Câmara dos Vereadores e Ministério Público). Estamos diante de um modelo de gestão urbana excludente, pautado pela lógica do retorno financeiro, que nega a significativos segmentos da população o acesso aos direitos sociais, principalmente aqueles setores economicamente mais vulneráveis. Concretamente, estes setores constituem os moradores das periferias da cidade (zonas norte e leste), das palafitas e das ocupações urbanas. Esta realidade é mais evidenciada à medida que se toma conhecimento de que somente 64% da população estão ligadas à rede geral de abastecimento,[2] mostrando que a universalização do acesso à água em Manaus está distante de tornar-se uma realidade palpável.
Confirmando análises realizadas em outras cidades, estas informações mostram que há uma grande diferença entre a disponibilidade de redes de distribuição e o acesso efetivo à água potável. Esta realidade nos coloca diante da fragilidade dos critérios utilizados para medir o avanço da universalização do serviço de abastecimento de água nas cidades. Uma universalização baseada meramente no critério de ampliação de redes urbanas conduz facilmente ao engano, pois este indicador sugere que o percentual da população que acessa a água potável corresponde ao índice de extensão das tubulações instaladas. Nada mais errado do que isto. Nesta lógica, pode-se visualizar que caminhamos para uma universalização maquiada ou uma falsa universalização.
Só porque há um cano não significa que há água limpa saindo dele, e mesmo se houvesse, ele pode estar distante de onde as pessoas realmente vivem. Além disso, se as tarifas sobre a água são altas demais e não podem ser pagas, tubulações novas são irrelevantes. É possível notar pessoas darem as costas para as tubulações novas ou buscarem água nos rios ou ainda a coletarem nos poços artesianos porque o seu acesso através da empresa exige mais dinheiro do que elas possuem. Então, muitas destas pessoas vão aos rios mesmo sabendo da existência de cólera ao longo de suas margens ou senão elas provêm a água de forma irregular, pois não podem viver sem este bem essencial para a vida. Nesta universalização precária é possível verificar também a distribuição da água em momentos inadequados, obrigando, muitas vezes, os moradores vigiarem toda a noite, esperando a chegada do precioso líquido para dele abastecerem num período de duas ou três horas.
A essencialidade da água numa sociedade extremamente desigual e marcada pela pobreza exige que o poder público garanta gratuitamente um volume mínimo de água para as pessoas em situações de vulnerabilidade social. No entanto, ao optar pela privatização do abastecimento de água, o poder público manauense inviabiliza esta medida de solidariedade e cidadania, pois a concessionária privada é pautada pela lógica do retorno financeiro e anseia por elevar cada vez mais os seus lucros, transformando a água em mercadoria, acessível somente através da compra.
Num contexto de desigualdade estrutural, em que grandes segmentos da população não possuem recursos suficientes para o pagamento das elevadas tarifas, o poder público abdica de sua responsabilidade social e contenta-se com a realização de uma universalização de mentira. Com isso, o poder público municipal e a empresa fingem realizar os serviços contratuais, consolidando o desprezo pelas populações mais pobres e a invisibilidade social das multidões residentes nas periferias, margens dos igarapés, favelas e ocupações urbanas.
Desta forma, a implantação do direito à água, reconhecido pela ONU (28 de julho de 2010), encontra mais uma resistência com a privatização dos serviços de água e esgoto. Por mais prejudicial que seja, esta tendência privatista tem sido cada vez mais acentuada nos últimos governos federais (Temer e Bolsonaro), que insistem em abrandar a Lei 11.445/2007 em pontos que enfatizam a responsabilidade do Estado na implantação dos serviços de saneamento básico, considerados direitos de cidadania. O objetivo destes governos tem sido o de facilitar a privatização dos serviços e água e esgoto, mas é necessário lembrar que para o mercado não existem cidadãos, mas somente clientes. Desponta a prevalência do dinheiro sobre a cidadania.
[1] Portal G1 Amazonas, 22 de abril de 2018; Portal Amazonas Atual, 26 de maio de 2019.
[2] Portal da Defensoria Pública do Estado do Amazonas, 28 de setembro de 2017.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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