Em que sentido pode-se considerar relevante, nos dias atuais, a noção de Pátria e de patriotismo?
Em tempos de globalização, de relativismos de soberania e de revisão do papel do Estado-nação, é possível conferir alguma relevância à ideia de patriotismo? Ou a tendência a uma mundialização homogênea, assomada à crise ética, econômica e política pela qual passa o país, autorizaria que se reconheça certa crise de patriotismo?
Para alguns, a ideologia do patriotismo no Brasil teria dado o seu “último suspiro” no governo imposto pelo regime militar, quando foi por este instrumentalizada, estando atualmente em fase de plena desidratação, rumo talvez ao aniquilamento.
Estaria esse sentimento ou atitude em relação ao próprio país em fase de extinção? Por que seriam tão escassas, em nosso tempo, as atitudes patrióticas? Apenas porque excluíram disciplinas como “moral e cívica” ou “OSPB” das escolas? Ou porque se deixou de cantar o hino nacional nos colégios? Difícil ignorar que a conduta e o exemplo daqueles ocupam cargos estatais, eletivos ou de carreira, exerce grande influência quanto a esse definhamento do patriotismo brasileiro.
Não seria esse desprezo às coisas cívicas da nação uma espécie de traição à Pátria? Para o dramaturgo Nelson Rodrigues, “Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.” Sem dúvida, a história de uma nação pode ser também contada a partir dos eventos, das tragédias e dos danos produzidos pelo traidores da pátria. Quisera Joaquim Silvério dos Reis tivesse sido o último, mas o processo histórico de formação nacional sucedeu-se de tal modo que a “traição” à Pátria infelizmente persiste, chegando às vezes ao absurdo de ser até mesmo institucionalizada.
Não se devem ignorar também as impactantes consequências do processo de globalização em curso e da difusão de um pensamento ou ideologia geral que postula a formação de uma identidade planetária, ainda que sem preservar os direitos fundamentais conquistados. Karl Marx já havia sentenciado que o capitalismo e os operários não têm pátria. Por isso, importar questionar: vivemos, de fato, num tal momento de predomínio da noção de pátria-mundo, ou de aldeia global, que prescindiria da ideia de Pátria, de identidade e cidadania nacional, dos sentimentos e das atitudes patrióticas? É recomendável aderir a um modelo de globalização que não se compromete em assegurar os direitos individuais e sociais protegidos constitucionalmente pela Pátria?
Ao longo do tempo histórico constata-se, de modo bastante frequente, inclusive no caso brasileiro, a ocorrência de crises econômicas, sociais, políticas, religiosas, humanitárias… Por conta dessas das diferentes crises pode-se afirmar que os povos ou os cidadãos das diferentes nações abandonaram a atitude e o sentimento de afeto às tradições e às memórias da terra-Pátria? Verifica-se que em regra não. Antes, o que se constata é o movimento de grande parte dos nacionais para reconstruir a própria nação após as sucessivas crises que esta sofre, mesmo quando em caso de catastróficas guerras.
Apesar de tudo e de todas as crises, por maiores riquezas e influências que se possa acumular, somente num lugar a que se possa se sentir pertencido é que se pode chamar de pátria. Somente nesse lugar é que seguramente não se é estrangeiro. Pois é nesse lugar, a que nomeamos Pátria, que construímos laços de pertencimento afetivos, valorativos, tradicionais e de memória.
A pátria é esse lugar, espaço ou ambiente no planeta que une aos seus nacionais por vínculos históricos, afetivos, culturais, valorativos e cívicos. Laços capazes de ligar ao presente o passado e o futuro comum do povo. Alphonse de Lamartine escreveu que “a cinza dos mortos é que cria a Pátria”, no que foi acompanhado por Ernest Renan que acrescentou: “Uma Pátria compõe-se dos mortos que a fundaram assim como dos vivos que a continuam.” É aonde se pode chamar de lar pátrio.
Uma casa-nação que coopera com as demais nações, evita a manipulação do patriotismo pelo fundamentalismo econômico, político ou religioso. O patriotismo contemporâneo não é xenófobo, mas comprometido com a promoção dos direitos humanos, o respeito à diversidade cultural e com o civismo planetário, respeitando as liberdades políticas, a liberdade econômica, a liberdade de crença e de consciência.
Por maior que seja a diversidade cultural dos integrantes do povo, há claramente uma teia que tece certa unidade nacional e forma esse vínculo de quase eternidade chamado pátria. A pátria é, por isso, o terreno doméstico da identidade e da integridade de memórias e de tradições de um conjunto diverso de nacionais e de culturas a que se chama povo. E o sentido da pátria é servir ao seu povo e, a partir dele, florescer patriotas e o patriotismo. Daí a justeza do ensinamento de Rabindranath Tagore quando afirma que: “A pátria não é a terra. No entanto, os homens que a terra nutre são a pátria.”
Ainda que se possa entender, como o fez Rui Barbosa, que “A pátria é a família ampliada”, não se pode desconsiderar a experiência histórica e incorrer em excessos ou degenerações de patriotismo como o culto ao nacionalismo integral ou absoluto, que redundaram em movimentos de extrema-direita, ultra-conservadores, de inspiração fascista, como o integralismo no Brasil, liderado por Plínio Salgado nos anos 30 do século passado. Não é desse tipo de patriotismo nacionalista ao extremo, “adorador” estatal ultrapassado, que estamos falando. O patriotismo contemporâneo aprendeu as lições do passado, mas prossegue atento no presente em relação às usurpações de soberania e aos riscos do modelo de globalização em curso, sobretudo quanto à homogeneização cultural e à espoliação socioeconômica.
A pátria tem de zelar para ser, não madrasta, mas mãe para seus filhos e estes alimentar o sentimento de patriotismo e a atitude de patriota para com a nação ou a mãe-pátria. Como falar em “independência”, “liberdade”, “justiça”, “ordem e progresso”, sem um mínimo de afeição e de atitude benéfica pelo espaço geográfico, histórico e ambiental no qual nascemos e vivemos?
Como fazer alguma coisa em favor da terra em que nascemos e nos formamos sem termos laços de memória, de tradição e de valor em relação a ela? Por que tantas pessoas já se convenceram que a melhor maneira de se relacionar com a pátria-mãe é indo embora dela? E outras tantas já se foram… O que nos leva, muitas vezes, a valorar que o exterior e o importado é sempre mais “chic”, mais bonito e melhor? Seria apenas esse nosso crônico complexo de colonizado ou haveria algo mais nessa equação sociológica?
São muitas questões difíceis de entender e, mais ainda, de responder, pois elas não se enquadram simplesmente em esquemas doutrinários ou teóricos. Demanda que investiguemos um pouco mais. E novamente voltemos a nos perguntar: ainda somos uma pátria “amada, idolatrada, salve, salve…”?
Aquele afeto que nos une à terra e à memória de nossos pais, que acertando ou mesmo errando, que vencendo ou mesmo fracassando nos fez chegar até aqui, aquele sentimento de amor próprio e de identidade por sermos pertencentes à nação na qual nascemos e nos vinculamos como cidadãos, e que nos atravessa a todos, aonde está? Em que depósito de nossas curtas memórias e atropeladas vidas foram largados?
Será que ainda nutrimos a mesma euforia quando vemos nossa sempre polêmica seleção entrar em campo? Creio que sim, mesmo que ainda doa os “7×1” da última copa da Fifa. Será que nos entusiasmamos quando o Estado, por meio de forças policiais, reconquista um território antes dominado pela economia do crime ou por forças do narcotráfico? Será que ainda acreditamos que podemos melhorar esse país continental, rico, lindo e diversamente humano para os nossos descendentes? Será que ainda nos importamos em tentar fazer com que todos consigam viver melhor ou com mais dignidade nele? Ou será que esvaziamos nossas esperanças, desviamo-nos ou desistimos de nossa busca essencial por conta de mais um governo pérfido ou de outra crise cíclica do capitalismo e da má gestão pública?
Aos que têm a profunda convicção de que o Brasil não é uma causa perdida. Aos que percebem o histórico esforço da sociedade nacional, dos trabalhadores e dos empreendedores de ontem e de hoje para construir uma pátria-mãe. Aos não renegam aos abnegados esforços de seus pais para edificar uma nação digna. Aos que não desistiram desse lar cívico no planeta… Esses sabem que nossa independência ainda está em curso. E para esses, que são os imprescindíveis de Brecht, um grito ainda ecoa vivo no horizonte da história: “independência ou morte!”
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