Insistindo que a tragédia filosófica decorre de que os sujeitos não partem nunca do mesmo lugar, nem têm as mesmas oportunidades, e que este pensamento/atitude só serve pra manter as mesmas condições de privilégio, cabe anotar que o delírio liberal é insistir no caminho contrário e focar no indivíduo como se a sociedade fosse apenas uma soma deles. Portanto, é preciso aprofundar, investigar os lugares-comum nesta farofa política do país e o risco dessa prosopopeia colapsar as estruturas mais rígidas do sistema.
Para isso, “…é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, diria Caetano ao ironizar, em “Divino e Maravilhoso”, as aparências enganosas das mudanças miraculosas que a mídia veicula. Que entre em campo a crítica esclarecida ao vade-mécum neoliberal. Além de atenta, precisa estar pronta para se reinventar. E que, para isso, a esquerda beba das águas clássicas servidas pelos mais diversos pensadores, e esteja pronta para não repetir os erros de ambiguidades da prática política. Aliás, o que significa, hoje, ser de esquerda, senão um contraponto crítico da embromação liberal? Primeiramente, há de se destacar a convicção de que a amplitude desta tomada de posição se faz real a partir das potencialidades materiais que seu próprio desenvolvimento foi capaz de construir. Isto é, o homem, ao mesmo tempo que é produto de seu tempo, se faz autor da configuração desse próprio momento histórico, mesmo que tais relações não estejam evidentes.
O ser humano se difere dos outros animais ao carregar em si um vazio, repleto de potencialidade, capaz de se adequar a qualquer forma de desejo. Não há outra maneira de ser da abelha, que não seja reproduzir a mesma arquitetura para qualquer outra colmeia que exista. O ser humano, não. Ele carrega dentro de si a tarefa eterna de reconstruir as condições que o constituem. Somos, pois, responsáveis pelas condições de todos os humanos pelo reconhecimento do que se faz necessário. E aí reside a nossa liberdade. Ou seja, reconhecer que o social determina ao sujeito um espectro de possíveis desejos, sofrimentos, gozos e fracassos. O indivíduo é a manifestação particular da conjuntura do que faz parte. O sujeito só existe diante de uma relação dialética com o todo. Transforma o meio, ao mesmo tempo em que por ele é transformado.
Esse recorte filosófico e seu contraponto liberal estão presentes no cotidiano. Um exemplo deste ideário é a estúpida colocação: “bandido bom, é bandido morto”, e os arautos dos Direitos Humanos “defendem bandidos”. O que fundamenta a necessidade desta discussão, portanto, é o conceito de natureza humana adotado. Ninguém nasce bandido, assim como ninguém nasce cristão, vegetariano, ou torcedor do Corinthians. Tais atributos decorrem das relações dos sujeitos com seus ambientes. Somente sua história poderá desenvolver as potencialidades de seus predicados. Afinal, a questão de violência jamais será uma simples questão moral, nem sequer de impunidade. A violência presente na nossa sociedade existe – e não poderia ser de outra maneira – por consequência de uma conjunto estrutural que determina as relações sociais, desde o sistema de produção e consumo de mercadorias, ao conjunto cultural, ético, de religiões e tradições, que sustentam os paradigmas, aceitos ou impostos, de vida. Não se combate violência matando bandido e sim mudando as formas de sociabilidade responsáveis que empurram ao crime. Nunca se prendeu tanto, e nunca se matou tanto, sobretudo, negros, prostitutas, gays e pobres. Mesmo assim, os índices de violência insistem em aumentar. Vamos voltar ao assunto..