Enquanto no Brasil atual é possível notar esforços articulados entre governos e empresários no sentido de privatizar o saneamento básico, no mundo a fora há uma tendência acentuada de remunicipalização deste setor, onde o poder público reassume a gestão dos bens comuns, buscando aperfeiçoar os níveis de democracia. A precariedade dos serviços prestados, as elevadas tarifas cobradas aos consumidores e a busca de uma gestão mais transparente constituem as principais razões que justificam a tendência mundial à remunicipalização do saneamento básico.
Em Manaus, a experiência de duas décadas de privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário apresenta razões suficientes para que se realize a retomada destes serviços por parte do poder público: a dotação da tarifa mais cara da Amazônia (figurando entre as mais elevadas do Brasil), a oferta de serviços precários nas periferias manauenses, a desvalorização da participação social na gestão dos bens públicos, a negação da tarifa social para a maioria das famílias que a ela tem direito, os alarmantes índices de perdas na distribuição da água tratada, os vergonhosos indicadores de cobertura dos serviços de esgoto, a poluição dos igarapés (e rios) e a falta de investimento da concessionária.
Nos processos de remunicipalização do saneamento básico chama atenção os numerosos casos deflagrados na França, um país historicamente afeito à privatização da água. Nesta nação é possível identificar, nos últimos 15 anos, um total de 106 casos de remunicipalização e constatar que não houve nenhuma privatização nos últimos 20 anos. A onda de remunicipalização parece ter colocado um fim nas práticas abusivas mais flagrantes que foram reproduzidas durante décadas no setor da água na França. Estas ocorrências também são acompanhadas de 20 casos de remunicipalização dos serviços de transporte público, 15 casos de restaurantes escolares, 3 casos de retomada da gestão de resíduos sólidos e 2 casos de empresas de energia.
Um grande número de cidades francesas, incluindo Paris e outras grandes urbes como Montpellier, Niza, Rennes e Grenoble, remunicipalizaram os seus serviços de abastecimento de água, mas esta tendência também ocorre em pequenas e médias cidades. A grande quantidade de serviços de água na França torna impossível a detecção de uma cifra exata, mas se destaca o caso de Montpellier, a última grande cidade francesa a remunicipalizar os seus serviços de água, em 2016. A reviravolta nesta cidade é significativa porque ela é sede das maiores multinacionais privadas do ramo do saneamento, tais como Veolia e Suez. Por isso, esta cidade foi considerada por muito tempo o carro-chefe do setor privado da água.
A empresa francesa Suez foi a multinacional que privatizou os serviços de água e esgoto de Manaus, no ano 2000. Criando grandes expectativas na capital amazonense, esta empresa realizou um péssimo serviço na cidade, tendo que abandonar a concessão em favor de outra empresa privada, em 2006. Além de realizar uma privatização eivada de vícios e irregularidades, esta empresa não investiu no saneamento de Manaus, precarizando ainda mais os serviços a tal ponto que foi necessário se decretar estado de calamidade pública na cidade pela falta de água, em 2006.
A empresa Suez também foi alvo de investigações de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI 2005), na Câmara de Vereadores de Manaus, na qual se constatou a sua total irresponsabilidade perante os serviços públicos e a complacência da prefeitura da cidade diante daquele estado de coisas. Pelos péssimos serviços realizados, a CPI recomendou a quebra do contrato de concessão, mas o poder público ignorou esta recomendação, prorrogando o sofrimento da população por tempo indeterminado, sob a gestão da iniciativa privada.
Com a remunicipalização dos serviços de Montpellier (França), o preço da água diminuiu 10 por cento e podia ter diminuído ainda mais se não fosse pelo mal estado em que se encontravam as infraestruturas, como se descobriu depois do retorno dos serviços para a prefeitura. Montpellier criou um Observatório da Água, inspirado no modelo de Paris, com o objetivo de facilitar a participação cidadã. Além disso, estabeleceu-se uma significativa valorização da presença da sociedade civil na gestão do operador público. Este elemento da participação é muito importante, tendo em vista que havia uma fraca coalização de forças populares com incidência na estrutura administrativa dos serviços públicos.
Segundo Olivier Petitjean, escritor e investigador francês, o principal fator que tem promovido a remunicipalização da França é, sem dúvida, a reação frente às práticas abusivas das companhias privadas (tarifas excessivas, falta de investimento e manutenção, altas comissões cobradas pelas matrizes), mas a tendência também tem sido impulsionada pelo interesse na sustentabilidade ambiental, na democracia e na justiça social. Em outras palavras, a remunicipalização não responde somente à simples gestão econômica dos serviços públicos, mas também à própria natureza e objetivos destes serviços.
A remunicipalização implica, no mínimo, a diminuição das tarifas (justiça social), a redução das perdas e manutenção da rede (sustentabilidade) e uma maior transparência financeira, ao menos para dos cargos eletivos (gestão democrática). Muitos operadores vão mais além destes passos mínimos. Algumas cidades têm introduzido modelos mais avançados de gestão democrática (maior transparência pública, representantes dos cidadãos em conselhos administrativos e organismos dirigidos por cidadãos e cidadãs, como o Observatório da Água de Paris e agora, em Montpellier). Diversas cidades têm adotado uma política que estimula os usuários a reduzir o consumo, ação impensável para os fornecedores privados, que buscam lucrar com a ampliação da venda da água como produto.
O centro do debate sobre a gestão pública dos serviços coletivos e a privatização está em quem paga o preço destes serviços e quem se beneficia deles, não somente do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista social e ambiental. No entanto, é necessário também abordar a questão da própria natureza e propósitos dos serviços públicos. Na França, a remunicipalização do setor de água explicita o fato de que a gestão pública está abrindo caminhos para a reinvenção dos serviços públicos locais, democráticos e sustentáveis, centrados nas necessidades básicas e na justiça social.
A tendência à remunicipalização do saneamento básico indica que o mundo busca responder minimamente ao apelo civilizatório, mas sugere também a emergência da percepção de que o mercado é incapaz de promover a cidadania. A indiferença ao sofrimento das populações mais vulneráveis e a tendência à mercantilização de serviços essenciais apontam para o fato de o Brasil estar na contramão deste processo civilizatório.
Em Manaus, os decepcionantes indicadores de desempenho da gestão privada dos serviços de água e esgoto indicam que é hora de destravar este processo civilizatório, mas o governo de plantão é excessivamente descomprometido com o bem público e amplamente envolvido com os interesses privados. Se houvesse um pouco mais de amor à democracia, os serviços de água e esgoto já teriam sido remunicipalizados em Manaus.
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