A presidente Dilma Rousseff recorreu à expressão de Nelson Rodrigues, usada em uma crônica de 1958, para rebater as críticas do ex-jogador Ronaldo, que disse estar envergonhado com os problemas da organização da Copa do Mundo no Brasil. “O nosso país fará a Copa das Copas. Não temos do que nos envergonhar. Não temos complexo de vira-lata”.
Nelson Rodrigues, quando usou o termo, escrevia uma crônica sobre a participação do Brasil na Copa da Suécia, quando o país conquistou o primeiro título mundial. Uma vitória que estava entalada na garganta desde 1950, quando a Seleção Canarinho perdeu o título no Maracanã para ao Uruguai. “Temos dons em excesso, e só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida nossas qualidades. Quero aludir aqui ao que eu posso chamar de complexo de vira-latas”, escreveu.
A partir daquele momento, segundo Nelson Rodrigues, o Brasil não precisaria mais exercer o seu complexo de vira-latas em relação aos povos estrangeiros. Essa explicação é dada pelo escritor Ruy Castro, no documentário “O Complexo de Vira-Latas”, do diretor Leandro Caproni.
Nelson Rodrigues, no entanto, explica o termo na própria crônica: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos ‘os maiores’ é uma cínica inverdade”.
No documentário de Caproni o crítico de cinema Inácio Araujo afirma que o complexo de vira-latas pode ser percebido na organização da Copa do Mundo no Brasil. “A reação de pessoas que são lúcidas é, assim, de uma catástrofe. Não sei se vai acontecer essa catástrofe, pode ser que aconteça. Mas, desde o primeiro momento, você diz: isso só pode dar besteira, só pode dar tudo errado, só pode dar em roubo, etc., prejuízo para a nação. Existe quase um culto da derrota”.
E mais: Inácio Araujo afirma que o complexo de vira-latas é um mal que afeta, não toda a sociedade, mas sobretudo a classe média. “Eu partilho dessa ideia do Nelson Rodrigues de que existe essa coisa, mas muito localizada na classe média. Não é uma coisa do povo, porque o povo não tem outra coisa. Isso nunca foi…”.
O jornalista Luiz Zanin, que também participa do documentário, corrobora com a ideia de Araujo: “O povo nem tá ligando pra isso. O povo, apesar de tudo o que se faz, é muito mais ligado no futebol jogado no Brasil do que o futebol jogado na Europa. Mas existe essa sensação de que o modelo a ser seguido é sempre o modelo do país desenvolvido. No caso do futebol, a Europa. Nós sempre olhamos assim meio embasbacados. Nossos repórteres, às vezes, vão para um campo de futebol e dizem: ‘Nossa senhora! Isso é que é um campo de futebol. Isso é que é organização. Olha que público civilizado, não precisa nem de alambrado, porque eles não invadem o campo’”.
Minhas considerações
Há duas coisas sobre as quais gostaria de fazer algumas considerações: o comportamento do brasileiro diante do futebol e o comportamento diante da política (visto aqui em sentido amplo).
Sobre o primeiro, Nelson Rodrigues estava certíssimo, tanto sobre o complexo de vira-latas que acometia o brasileiro até a conquista do primeiro título (e olha que a crônica foi escrita antes da conquista do mundial), quanto sobre a superação desse complexo caso o Brasil arrastasse aquela taça na Suécia. Foram mais dois títulos até 1970, e desde então, o brasileiro passou a olhar a seleção do país com orgulho.
Tal orgulho só foi quebrado nos últimos anos, com a desconfiança que passou a rondar as organizações do futebol brasileiro, da CBF às federações estaduais de quarta categoria, como a do Amazonas. O orgulho foi quebrado quando o futebol passou a ser um simples negócio e os jogadores começaram a encarar os clubes e a seleção brasileira apenas como uma janela para se exibirem ao mundo e ganhar alguns milhões ou bilhões em moeda nacional ou estrangeira. Basta olhar para o Campeonato Brasileiro e os clubes de tradição para percebermos que o nosso futebol não vai bem, como já foi no passado.
Não é a maioria que depositou o orgulho na gaveta. A maioria ainda torce cegamente para a seleção brasileira e para o seu clube, sem se importar com os escândalos que assolam as organizações do futebol. Inácio Araujo tem razão quando fala da classe média, mas discordo dele quando diz que esta é quem tem o complexo de vira-latas. A classe média consegue enxergar e exercer o seu direito sagrado à crítica, o que não ocorre nas classes menos favorecidas, pelos inúmeros problemas que as enfrentam, e nem nas classes abastadas, que não está interessada nos problemas do País.
Neste contexto é que entramos na segunda questão: o comportamento diante da política. Dilma Rousseff tem razão quando diz que “não temos complexo de vira-latas”. Mas ao dizer isso, ela apenas quer escamotear a realidade. A crítica de Ronaldo é pertinente sobre a organização da Copa do Mundo, mas a presidente quer fazer crer que o Brasil cumpriu todas as exigências combinadas com a Fifa em outubro de 2007, quando o País foi escolhido para sediar o mundial. Naquela ocasião, o presidente Lula disse ao presidente da Fifa Joseph Blatter: “O mundo terá a oportunidade de ver o que o povo brasileiro é capaz de fazer”
Deixasse nas mãos do povo e certamente ele faria mais e melhor. Mas não foi o que aconteceu. Tudo ficou nas mãos de meia dúzia de políticos que não querem um país melhor, mas apenas se beneficiar dos recursos públicos. Os preparativos da Copa do Mundo, desde o início, foram vistos com desconfiança, não porque o povo tem complexo de vira-latas, mas porque conhece a índole da classe política, guardadas as exceções.
Governadores viam nas obras a possibilidade de embolsar alguns milhões, como certamente foi feito. As promessas levaram muita gente à euforia, mas desde sempre uma parte dos cidadãos estava de olho e denunciava aquilo que obviamente não estava sendo tratado com a devida correção.
Vejam o caso do Monotrilho de Manaus. O governo de Eduardo Braga contratou uma empresa para fazer um estudo sobre o melhor meio de transporte para a Copa. Pagou R$ 5 milhões por um relatório que apontava o monotrilho como a opção mais viável, quando o mundo inteiro olhava com desconfiança para esse modal. Para a Copa do Mundo, o Monotrilho poderia funcionar, mas como foi projetado, cobrindo apenas uma área da cidade, não poderia funcionar para o dia a dia da população.
Da parte da Prefeitura de Manaus, a promessa era de construir um sistema de ônibus, complementar ao Monotrilho. Nada foi feito. Gastaram-se alguns milhões para reformar os abrigos do falido Expresso e deram-lhe o nome de BRS.
Portanto, não é com a Copa no Brasil que a população está descontente; é com a mentira da classe política que prometeu e não cumpriu; que se aproveitou do evento para superfaturar obras; que trata seus eleitores como imbecis.
A classe média não tem complexo de vira-latas, como querem fazer crer os críticos e as autoridades, e não há mal nenhum em se comparar o Brasil com outros países. Quem desembarcou no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, ou mesmo no aeroporto internacional de Kuala Lumpur, na Malásia, como fizemos (eu e outros colegas jornalistas, que viajamos a convite da empresa que pleiteava fazer o monotrilho de Manaus, a Scomi, em 2011), sabe que o nosso atraso é homérico. Desembarcamos e embarcamos nesses aeroportos sem enfrentar qualquer fila. Na chegada a São Paulo, passamos pelo menos uma hora para passar na fiscalização da Receita e Polícia Federal. Os serviços lá e aqui são incomparáveis.
Mas como disse a presidente, nossos aeroportos não são “padrão Fifa”; são “padrão Brasil” e feitos para os brasileiros.
Quando comparamos nossos aeroportos, nossa organização, nossas ruas, nossas estradas, os preços dos nossos produtos e a qualidade dos nossos serviços públicos com os de outros países, não estamos exercendo o complexo de vira-latas, mas tentando alertar para uma questão óbvia: nós temos condições iguais ou maiores do que esses países para ser iguais ou melhores que eles. Não o fazemos porque cada um olha apenas para o seu prato na hora de comer. Não há um sentimento de coletividade que nos mova a construir um país melhor para todos.
Teremos Copa, sim, mas perdemos uma grande oportunidade de darmos um passo importante para a construção de um país melhor.
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Para quem tiver interesse, eis o documentário O complexo de Vira-Latas
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
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