
O direito humano à água e ao saneamento foi reconhecido na Assembleia das Nações Unidas, em 28 de julho de 2010, sendo resultado de intensas mobilizações realizadas por comunidades urbanas e rurais, assim como por organizações e movimentos sociais democráticos.
Estes grupos compreendem que a água, por ser elemento essencial para a vida humana, deve ser garantida pelo Estado e pela sociedade aos cidadãos, principalmente nos tempos contemporâneos, em que as mudanças climáticas, a poluição e a agressão contra as florestas colocam em risco a renovação dos recursos naturais e a manutenção do ecossistema terrestre, tornando mais difícil o abastecimento hídrico das populações.
A intervenção do Estado para garantir o acesso dos cidadãos à água e ao saneamento também é imprescindível no contexto da prevalência da economia neoliberal, em que o mercado é altamente estimulado, podendo transformar em mercadorias os elementos mais básicos para a vida. A absolutização do mercado prejudica as populações mais pobres, uma vez que elas encontram dificuldades em obter através do pagamento até mesmo os bens de primeira necessidade. Visando garantir a possibilidade de acesso destas populações à água e ao saneamento, os movimentos democráticos buscam conter o processo de mercantilização se contrapondo aos interesses dos grandes empresários, travando confrontos de diferentes intensidades em diversas partes do mundo.
A luta pelo acesso universal à água potável tem como uma de suas referências as mobilizações populares contra a privatização do serviço de abastecimento de água, realizadas em Cochabamba (Bolívia), no ano 2000. Este movimento, conhecido como “a guerra da água”, converteu-se, por sua grande capacidade de ação, articulação e consolidação, em um emblema global da luta popular contra a privatização dos serviços públicos essenciais. Houve amplas repercussões a nível nacional, onde o gabinete inteiro do governo renunciou como consequência da confrontação, e, no âmbito internacional, onde o evento se tornou um símbolo da participação popular que busca aperfeiçoar a democratização da gestão dos serviços essenciais.
Em setembro de 1999, o Semapa (Serviço Municipal de Água Potável e Esgotos) da cidade de Cochabamba foi privatizado e vendido à Aguas del Tunari, sob pressão do Banco Mundial e após um obscuro processo de licitação. Em fins de 1999, em reação à gestão da Bechtel, corporação americana controladora da concessionária Águas del Tunari, os habitantes da cidade se mobilizaram, diante do enorme aumento das tarifas dos serviços de água e perante à expropriação dos sistemas comunitários de água. Nessa ocasião surgiu a Coordenação da Água e da Vida, organização criada por grupos da sociedade civil, sindicatos, camponeses que praticavam a irrigação e comitês democráticos de água.
As primeiras reivindicações da Coordenação, que pediam a redução das tarifas, não apenas foram ignoradas pela Aguas del Tunari e pelo governo municipal, como também tiveram de enfrentar a hostilidade e a repressão da polícia e do exército. A pressão popular aumentou e, num referendo organizado pela Coordenação, cinquenta mil pessoas exigiram que se pusesse um fim à privatização.
Em abril de 2000, a guerra da água culminou numa greve geral de uma semana, que paralisou toda a cidade e desencadeou uma dura repressão pelo governo, deixando centenas de feridos e um jovem de 17 anos morto. Os cidadãos reagiram rebelando-se com maior determinação. Finalmente, a 11 de abril de 2000, o governo admitiu a derrota e a Aguas del Tunari abandonou a região.
As reivindicações da Coordenação foram satisfeitas: a Aguas del Tunari teve de se retirar e o Samapa retomou o controle da água no município. A Coordenação passou a fazer parte – junto ao sindicato e ao governo local – de uma junta diretiva provisória e, com isto, conseguiu certa capacidade de decisão sobre o futuro da empresa. Foi assim que a empresa pública se salvou do aniquilamento, e um novo diretor-geral, eleito a partir dos membros da Coordenação, começou a construir um serviço público mais democrático. A vitória da guerra da água abriu caminho para uma administração mais democrática, dirigida em grande parte pelas organizações civis.
Na Amazônia, a ânsia pelo lucro, materializada na atuação das grandes empresas e organizações financeiras internacionais, ataca as conquistas consideradas como direitos fundamentais e se apropria de bens comuns de forma irresponsável, deixando o rastro da destruição (depredação ambiental, extinção da biodiversidade, conflitos sociais e precarização da vida humana) e gerando preocupação em relação ao presente e ao futuro dos povos desta região e do planeta.
A privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da cidade de Manaus apresenta uma história repleta de conflitos e contradições. Esta história é consubstanciada em inúmeras irregularidades contratuais, estado de calamidade pública (2006), instauração de Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI 2005 e CPI 2012), falta de transparência, reduzidos investimentos e repetidas mudanças de concessionária. Além disso, os serviços, que não chegam a todas as áreas da cidade, são os mais caros da Amazônia e se encontram entre os mais elevados do Brasil. Com este desempenho, Manaus aparece entre as piores colocações no ranking das grandes cidades brasileiras (SNIS 2017), demonstrando que a privatização tem se mostrado uma empreitada ineficiente e frustrante.
Como ocorreu em Cochabamba, as empresas que privatizaram o abastecimento de água e os serviços de esgotamento sanitário em Manaus demonstram não estarem interessadas no bem-estar das populações, principalmente as mais pobres. Elas pautam seus projetos prioritariamente pelo objetivo de gerar de lucros, realizando um perverso processo de exploração dos manauenses e, ao mesmo tempo prejudicando os rios e igarapés da cidade, ao lançarem nestes corpos hídricos os esgotos urbanos sem nenhum tratamento.
A lógica do mercado, ao ser implantada na gestão destes serviços, consolida os processos de desigualdade existentes na cidade, excluindo expressivos setores sociais do usufruto dos seus direitos fundamentais. Com isso os serviços públicos se distanciam cada vez mais da população, dificultando a construção de uma cidade justa, democrática e sustentável. Mas a memória da vitória na guerra da água, na Bolívia, ainda alimenta o ideário das comunidades, populações mais pobres e movimentos sociais, estimulando o engajamento e a luta pela democratização dos serviços públicos essenciais.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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