Vícios são abismos de decadência humana. Quando o problema é o viciamento humano, nada é tão ruim que não possa ficar ainda pior. É um poço sem fundo. Os caminhos para ele são muitos, aparentemente atrativos, compensadores, repletos de sensações de prazer e de múltiplos devaneios. Os resultados que se seguem, todavia, são impiedosos.
O preço é altíssimo, mas as ilusões do viciamento afetam a cognição, a autonomia da vontade e a lucidez dos viciados, motivo pelo qual eles acabam se tornando presas relativamente fáceis das conseqüências nefastas dos vícios, inclusive da violência e da criminalidade que lhe são características.
Diversos são os vícios, em nosso tempo, que podem impactar a segurança pública e a qualidade de vida em sociedade, em especial por deflagrar inúmeros fatos ligados à violência e à prática de delitos. Dentre esses vícios, pode-se discorrer brevemente acerca de alguns, ressaltando-se sua relação com a violência e a criminalidade:
- jogo patológico, ludomania ou jogos “de azar” – o “vício em jogar” ou a compulsão por jogos e apostas de azar contribui para o aumento da criminalidade, estando geralmente associado a outros vícios (drogas e prostituição). No ordenamento jurídico penal de vários países, dentre os quais o brasileiro, constitui-se em contravenção, todavia, pode estar relacionado a diversas outras infrações criminais;
- vício em comprar compulsivamente ou oneomania – o consumismo compulsivo é vício típico na sociedade de consumo e de pressões sociais, tais como amigos, familiares, círculo social, propaganda e publicidade apelativa, dentre outros. Está associado a psicopatologias: bipolaridade, mania de ostentação e/ou nivelamento de status com grupos de alto padrão de consumo etc. Esse vício leva pessoas a se endividarem excessivamente. A maioria dos compradores compulsivos são mulheres. O endividamento crônico pode levar a eventos de criminógenos, estando associado às vezes ao estelionato, à fraude, à apropriação indébita e a outros delitos. Muito comum estar associado a outros vícios como alcoolismo, tabagismo, drogas ilícitas;
- compulsão por sexo – o vício em sexo está relacionado a inúmeras violências e delitos sexuais: estupros, inclusive de vulneráreis; pedofilia; tráfico de pessoas para servir como escravas sexuais; consumo e produção de material pornográfico; perversões sexuais; prostituição; exploração sexual; obsessão incontrolável por sexo, dentre outros que inflam indicadores de criminalidade, principalmente ligados ao estupro, ao assédio e à exploração sexual. É considerável o quantitativo, segundo os registros do sistema de saúde e de assistência social, de doenças contraídas por causa da compulsão sexual, de ocorrências de gravidez precoce na adolescência e da gravidez indesejada em mulheres adultas, decorrente do vício em compulsão por sexo, seja próprio seja do parceiro;
- vício em internet e outros meios eletrônicos – pessoas que se tornam dependentes do uso, quase ininterrupto, da internet, suas redes sociais e meios de interação diversos, não apenas exageram na dose, como também passam a empregar essa ferramenta como meio para prática de crimes via eletrônica, praticando fraudes, apropriando-se indevidamente de informações e recursos pessoais e corporativos. Dentre esses viciados, há aqueles que utilizam a rede virtual mundial para furtar, causar danos, alimentar e difundir sites “espiões”, sites “crackers” e outros que geram prejuízos, fazem apologia a delitos, a conteúdos pornográficos etc. Muitas vezes também está relacionado a outros vícios, principalmente o vício em games eletrônicos, associado ou não ao viciamento em emissoras de TV que enfatizam a violência e o consumismo exacerbado de sexo e de futilidades em suas programações, os quais acabam influenciando a prática de condutas violentas;
- vício em violência simbólica – é a prática de bullying, de preconceito, de racismo, de discriminação, de xenofobia, de difamação, de calúnia, de injúria, do uso leviano de veículos e de meios de comunicação para ofender, ultrajar e praticar outros atos atentatórios à dignidade pessoal e à reputação profissional de quem quer que seja, à cultura e às opções religiosas e sexuais, dentre outras, de indivíduos, de grupos e de coletividades. Esse vício está associado também a questões de segregação e de intolerância, podendo culminar em violência física, em atos extremistas e de terror. O vício em violência simbólica pode ter raiz em fanatismos religiosos, políticos ou ideológicos, em fundamentalismos e dogmas obscurantistas, dentre outros fatores, que inibem a lucidez e comprometem o discernimento, impedindo o diálogo respeitoso entre as partes envolvidas em conflitos decorrentes da violência simbólica;
- vício em dinheiro – a apego exagerado e o gosto excessivo por dinheiro leva esse viciado a praticar delitos, tais como furto, roubo, apropriação indébita, extorsão, dentre outros, para saciar sua dependência pelo objeto do vício. Freqüentemente está associado à avareza, ao individualismo exacerbado, à mania de ostentação de riqueza ou poder econômico e a psicopatologias, tal como a cleptomania. No contexto de exacerbamento da cultura materialista monetarista, esse vício anda junto também da compulsão por comprar e do vício em poder político. O viciamento em dinheiro (posses, bens e recursos) pode fomentar a decadência do sistema político em direção a uma plutocracia (regime pelo qual o Estado é cogovernado pelos detentores de grandes riquezas, fruto da concentração dos recursos nas mãos de poucos, gerando escandalosa desigualdade social e enormes desequilíbrios de ordem econômica, política, cultural…), ou a uma cleptocracia (quando o Estado é cogovernado por ladrões, que empreendem a pirataria e o saque de recursos que deveriam ser de todos, naturalizando assim a injustiça social, a qual procuram combater sobretudo com a repressão policial-judicial institucionalizada, calcada no naniquismo ético e na violência sistêmica);
- vício em corrupção – é o vício comportamental pelo qual o viciado deturpa, estraga, eiva de erro, de maledicência e até mesmo de dano, de modo proposital, qualquer procedimentos ou relação para obter alguma vantagem ou apenas para reafirmar seu comportamento transgressor e deformador. É a auto-afirmação por meio do desvio patológico. O viciado em corrupção procura cooptar outros para a prática da fraude, de ilícito e de qualquer outro ato que viole as leis e os procedimentos corretos. Indivíduos e grupos portadores desses vícios julgam-se acima das leis e produzem estragos impactantes em todas as esferas (pessoal, familiar, comunitária, coletiva, social, política, econômica, cultural, religiosa etc), principalmente quando associados a outros vícios, em especial o viciamento em poder político. Os viciados em corrupção buscam impor a terceiros a responsabilidade pelas condutas que realizam. Costumam conhecer a regra para violá-la, encontrar brechas para desviar-se delas, chegando a ter um comportamento nocivamente patológico diante da relação com as normas institucionais e as regras de convivência social. Apegam-se a padrões antiéticos e tomam quase sempre por referências o agir de outros viciados, inclusive no permanente empenho de justificar o próprio vício pelo viciamento dos outros, podendo ainda ter um perfil sociopata;
- vício em poder político – o viciado em poder político ou no jogo eleitoral, na obsessão de contrair poder e visibilidade política, pratica condutas patrimonialistas e criminosas, corrompendo pessoas, físicas e jurídicas, deformando instituições. É capaz de sacrificar qualquer coisa tendo em vista a satisfação do próprio ego e a manutenção de uma identidade com o poder político (egocracia). O viciado político se considera acima das leis e das autoridades, sendo pouco tolerante às regras cívicas comuns a todos. Diferentemente do cidadão que se conduz de acordo com direitos e deveres legitimamente dispostos nas leis, o viciado político é movido pelo usufruto de privilégios, desviando-se do cumprimento dos deveres básicos. O viciado político tenta impor a outros a responsabilidade pelos atos que pratica. Julga-se mais esperto que as outras pessoas, crendo que sempre se dará bem e levará vantagem a qualquer custo sobre os demais indivíduos, as instituições e sobre a própria sociedade. Um componente de sua personalidade é a parca sensibilidade moral, muito embora seja suficientemente informado e inteligente para manipular o discurso da ética em proveito próprio. É a moralidade estragada de que falou Rui Barbosa, a ética do malandro, o jeitinho incorporado de maneira crônica no modo ser e agir do viciado político. O viciamento político fomenta outros vícios e crimes, fazendo uso de execráveis meios e práticas que comprometem o interesse público, a dignidade humana e a qualidade de vida da coletividade. Não raro está associado também a práticas cleptocratas, dentre outras condutas viciadas;
- vício em drogas – dependência de drogas lícitas (nicotina, cafeína, álcool) ou de drogas ilícitas (maconha, cocaína, heroína, crack etc) impacta sobremaneira os indicadores de criminalidade. É a parte talvez mais visível e radical do processo cultural de viciamento humano. Muito freqüentemente o viciamento químico (drogadição) é antecedido do simbólico e do comportamental. O consumo e o vício em drogas ilícitas movimentam uma poderosa e lucrativa economia criminosa, cuja extensão atual é planetária. O vício em drogas lícitas e ilícitas faz milhões de vítimas todos os anos, no mundo inteiro, seja por causa do consumo seja por conta da acirrada disputa entre facções e organizações criminosas em competição pelo mercado de drogas. A relação com atividades ligadas à economia do tráfico de drogas é responsável pela maioria das prisões efetuadas em diversos países, sendo a maior causa de encarceramento no Brasil. Entre 70% e 80% da população carcerária decorre de questões relativas ao tráfico ou associação ao tráfico de drogas. O vício em drogas também anda, muito freqüentemente, direitamente ligado ou articulado a outros vícios (jogo de azar, prostituição, consumismo exacerbado, corrupção etc).
Esses são apenas alguns, dentre outros vícios, que impactam sobremaneira os indicadores de criminalidade, mas que já servem para ilustrar a dimensão do processo de viciamento individual e coletivo que está em curso – operado como um negócio de grandes lucros –, num contexto de enfraquecimento do controle social do viciamento pelas instituições tradicionais (escolas, igrejas, família etc) e no qual o excesso de informação disponível não é garantia de qualidade informativa nem muito menos formativa. Ao lado da participação dos segmentos e de instituições sociais, políticas públicas, em todas as áreas da administração estatal, que atuem e surtam efeitos positivos frente a essa complexa realidade da cultura do viciamento humano, são fundamentais para a perspectiva de vida digna, livre e segura em sociedade.
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