Do ATUAL
MANAUS – O relato de avistamento de indígenas em isolamento voluntário em Itapiranga, na Região Metropolitana de Manaus, inflamou a “queda de braço” entre a Eneva S/A, que desde 2021 explora o gás natural na região, e o MPF (Ministério Público Federal), que tem atuado para frear as operações sob argumento de que elas impactam em terras ocupadas por indígenas.
O avistamento foi relatado por um agente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade ligada à Igreja Católica, em agosto de 2023, mas até agora nada foi confirmado pelas autoridades. Após tomar conhecimento do “testemunho”, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) liderou uma expedição ao local, entre março e abril deste ano, e encontrou apenas um artefato, que foi atribuído a isolados.
Os relatos têm sido usado por procuradores da República como argumento para interditar a área através da Funai, que detém poder de polícia. A Eneva, no entanto, afirma que essas informações, por si só, não são suficientes para justificar o isolamento, e alerta que eventual restrição gera risco de desabastecimento de energia elétrica em Roraima.
A Eneva explora o minério no Campo do Azulão, uma área localizada entre os municípios de Itapiranga e Silves, com acesso pela rodovia AM-330. A área foi arrematada em leilão de blocos de exploratórios de petróleo e gás promovido pela ANP (Agência Nacional de Petróleo).
O gás, depois de extraído e tratado, é transportado pelas rodovias AM-363 e BR-174 para uma usina termelétrica localizada em Boa Vista (RR), responsável por abastecer 60% da energia elétrica do estado.
Em maio de 2023, a Aspac (Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural) e o cacique Jonas Mura apresentaram uma ação judicial na qual apontaram irregularidades no processo de licenciamento do empreendimento, feito pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas).
Na ação, os indígenas se queixaram de que eles não haviam sido consultados sobre a exploração do gás e afirmaram que o barulho de explosões e de carretas que transportam o gás estava afugentando as caças. Além disso, eles defenderam que, por envolver direitos indígenas, o licenciamento deveria ser realizado pelo Ibama.
Em primeira instância, a Justiça Federal do Amazonas ordenou, em maio de 2023, a paralisação da operação no Campo do Azulão, mas a Eneva recorreu ao TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), em Brasília, e obteve uma liminar para manter as atividades.
Inicialmente, as discussões a respeito da presença de indígenas na área de impacto do Campo do Azulão estavam restritas às comunidades indígenas localizadas em Silves, que não haviam sido registradas pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
A própria fundação gerou confusão no processo judicial sobre o caso ao apresentar informações divergentes sobre a presença de indígenas na região.
Desde o início das discussões, a Eneva afirma que promoveu estudos preliminares sobre a presença de indígenas na região e que “informações da Funai atestam que não existem Terras Indígenas homologadas ou mesmo em estudo na área de influência do Complexo Azulão”.
Nesta segunda-feira (25), em resposta enviada ao ATUAL, a empresa reforçou que o processo de licenciamento comprovou a inexistência de indígenas na área de impacto do empreendimento.
“A Eneva reafirma que cumpre rigorosamente todas as exigências legais e regulatórias aplicáveis às suas operações e que o processo de licenciamento ambiental comprovou, junto aos órgãos competentes, a inexistência de terras indígenas demarcadas ou em estudo dentro do perímetro determinado pela legislação”, alegou a Eneva.
Isolados
As discussões sobre a exploração de gás natural em Silves e Itapiranga se intensificaram após um funcionário da Comissão Pastoral da Terra, identificado como José Jorge Amazonas Barros, ter relatado à Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema ter visto uma família de povo indígena isolado.
Barros afirmou que o avistamento ocorreu em uma região do médio curso de um afluente do Rio Uatumã, chamada de Igarapé Caribi, durante uma atividade de geoprocessamento em agosto de 2023. A região está a dezenas de quilômetros de distância das sedes das cidades de Itapiranga e Silves.
No início deste ano, a Funai, com outras entidades indigenistas e ambientalistas, decidiu realizar expedição na região entre 16 de março e 4 de abril deste ano. De acordo com as diretrizes da Política para Povos Indígenas Isolados, apenas a fundação, enquanto órgão indigenista do Estado Brasileiro, tem a prerrogativa de confirmar oficialmente a presença de povos isolados no Brasil.
A expedição teve a participação de Guilherme Daltro Siviero, servidor da CFPE-CPM (Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema); de Enoque, Maurício, Haroldo e Euller, colaboradores indígenas do Rio Jatapu; de Victor Alcantara e Silva, antropólogo; de um homem identificado apenas como Renan, da ONG 350.org; e de José Jorge, fonte primária da informação.
A Eneva afirmou que não foi convidada a integrar a expedição e afirma que a ausência de convite à Eneva ou a outros representantes limita a transparência do processo. A companhia também questionou a presença de representante da ONG 350.org, que atua contra a exploração de combustíveis fosseis.
“A Eneva não foi convidada a participar da expedição mencionada. A expedição foi realizada pela Funai e teve a presença de organizações não governamentais, como a 350.org, que possui posicionamento claro contra o uso de combustíveis fósseis, o que pode configurar um potencial conflito de interesses”, afirmou a Eneva.
A empresa afirmou que acredita que a inclusão de diversos atores, incluindo as companhias potencialmente impactadas, é essencial para garantir um diálogo justo e equilibrado. E que apesar dessa situação, mantém o compromisso de apoiar os esforços conduzidos pela Funai para “esclarecer, de forma definitiva, a questão da presença de indígenas isolados na região”.
“A companhia segue rigorosamente todas as regulamentações legais e ambientais aplicáveis, atuando em conformidade com as autoridades competentes”, afirmou a Eneva.
Ao ser questionada sobre a legitimidade da ONG 350.org nas discussões sobre o empreendimento, a Eneva afirmou que a entidade é reconhecida por seu posicionamento explícito contra o uso de combustíveis fósseis e que a participação da organização nas discussões pode gerar conflitos de interesse.
“No entendimento da Eneva, a participação de qualquer organização em discussões envolvendo temas sensíveis deve ser pautada por critérios de imparcialidade, isenção e transparência. Apesar de respeitar a atuação da 350.org em sua área de interesse, a companhia considera que seu envolvimento em discussões relacionadas às operações da Eneva pode apresentar conflitos de interesse, dado o posicionamento previamente declarado da ONG em oposição às atividades de exploração de combustíveis fósseis”, afirmou a Eneva.
Relatos
O MPF recomendou à Diretoria de Proteção Territorial da Funai que, através do instrumento administrativo da Portaria de Restrição de Uso, prevista no art. 7° do Decreto n° 1.775/96, promova a imediata interdição das áreas com a presença de indígenas isolados na região do Igarapé Caribi.
Para a Eneva, o relato de avistamento de indígenas isolados e de artefatos não são suficientes para interditar a região. “A legislação brasileira e os procedimentos da Funai estabelecem que a identificação e confirmação de populações indígenas isoladas devem ser baseadas em investigações técnicas e expedições complementares conduzidas por especialistas, conforme destacado pela própria Funai, em relatório”, afirma a empresa.
“Portanto, em conformidade com a legislação vigente, a Eneva entende que o relato de um agente da Comissão Pastoral da Terra e o avistamento de artefatos associados a indígenas isolados, por si só, não são suficientes para justificar o isolamento da área, o que pode afetar o abastecimento de energia elétrica na região Norte, em especial de Roraima”, completou a Eneva.
A empresa relembrou que o relatório da Funai reconheceu que ‘não foi possível confirmar de maneira inequívoca a presença de população indígena isolada na área’.
“Além disso, a região em questão apresenta características de alta antropização, com presença de atividades econômicas e infraestrutura que incluem extrativismo sustentável, propriedades agropecuárias, residências, subestações elétricas e centros urbanos”, afirmou a Eneva.
A empresa informou que permanece à disposição para colaborar com autoridades e instituições em busca de soluções baseadas em fatos e critérios técnicos, garantindo a continuidade do fornecimento de energia sustentável e confiável para Roraima e demais regiões.
O ATUAL tentou ouvir a Funai sobre as questões relacionadas à expedição, à restrição da área e impactos, mas nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta matéria.