O tribunal já pagou R$ 75 milhões, mas ainda tem R$ 276 milhões a pagar. TCE e MP-AM também estão pagando
MANAUS – O presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargador Ari Jorge Moutinho da Costa, considera impagável a dívida da Parcela Autônoma de Equivalência (PAE) que vem sendo paga aos magistrados da ativa, aposentados e pensionistas de juízes e desembargadores.
A PAE é um auxílio-moradia pago aos deputados federais de 1994 a 2002 e que os juízes federais reivindicaram para si, alegando se tratar de uma verba remuneratória, ou seja, estava incorporada ao salário dos parlamentares.
Em fevereiro de 2000, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os magistrados tinham direito ao auxílio, que passou a ser pago como Parcela Autônoma de Equivalência (veja como mais detalhes, abaixo, como surgiu a dívida).
O TJAM começou a pagar o benefício aos magistrados do Amazonas em outubro de 2010. Até outubro deste ano, o tribunal pagou R$ 75.261.042,58 e ainda há uma dívida de mais de R$ 276 milhões. “Do jeito que está sendo paga é quase que impagável, porque tem a questão de juros. O valor é muito alto. Se paga R$ 10 mil, no outro mês a questão de juros vai aumentando. Ninguém nunca vai conseguir receber o que é legítimo. Volto a dizer: isso não é nenhum favor que a administração está fazendo aos magistrados, isso é uma verba legítima”.
Nos primeiros meses, alegando falta de recursos – o tribunal tinha um orçamento apertado –, o então presidente do TJAM, desembargador João Simões, começou a pagar uma parcela mensal de R$ 1.000,00. A partir de fevereiro de 2011, a parcela foi elevada para R$ 3 mil.
Ameaça às comarcas
Nesse período, precisamente em abril de 2011, João Simões ameaçou fechar 36 comarcas do interior do Estado do Amazonas por falta de recursos. A dívida do TJAM, de acordo com Simões, superava R$ 200 milhões. A maior parte dessa dívida era referente ao pagamento da PAE, que na ocasião em que começou a ser quitada, Simões disse não haver informações sobre o montante devido. Os técnicos do tribunal ainda estavam fazendo a atualização da dívida, segundo ele.
O assunto do fechamento das comarcas ganhou repercussão nacional e o governador Omar Aziz decidiu elevar o percentual de repasse (o duodécimo) do Judiciário de 7% para 7,4% da Receita Líquida Corrente do Estado. Com a promessa de mais dinheiro, Simões elevou, em dezembro de 2011, a parcela de R$ 3 mil para R$ 10 mil. Nos meses seguintes (janeiro e fevereiro), foram pagas parcelas de R$ 5 mil.
Parcela de R$ 15 mil
Em março de 2012, o valor da parcela voltou a subir para R$ 10 mil e de abril a agosto daquele ano, o TJAM pagou R$ 15 mil por mês para cada uma das 305 pessoas que têm direito à verba indenizatória. A partir de setembro, os magistrados, aposentados e pensionistas passaram a ganhar todo mês R$ 10 mil a mais no contracheque de pagamento da PAE.
Ari Moutinho disse que os magistrados têm reivindicado uma parcela maior, mas o orçamento do Judiciário não lhe permite pagar mais. “Não temos a mínima condição de pagar uma parcela maior do que a que está sendo paga de R$ 10 mil, porque comprometeria a folha de pagamento e o orçamento do tribunal. Há uma reivindicação antiga dos colegas de que eu deveria pagar mais, mas não posso. Matematicamente, só posso pagar o que está sendo pago”.
Por mês, o TJAM transfere para o bolso dos beneficiários da PAE R$ 3,05 milhões. Cada magistrado já recebeu R$ 270 mil desde que a PAE começou a ser paga. No entanto, cada um ainda tem um saldo de mais de R$ 1 milhão, valor que cresce a cada mês com os juros.
A PAE no TCE
A Parcela Autônoma de Equivalência (PAE) também vêm sendo paga pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) e pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM). No TCE, os valores são pagos de acordo com a disponibilidade de recursos (não há pagamento mensal). Desde 2010, quando o benefício começou a ser pago, o TCE já desembolsou R$ 33,9 milhões.
De acordo com o presidente do TCE, Érico Desterro, ainda falta pagar R$ 30,7 milhões, mas ele disse que o tribunal têm condições de quitar a dívida, mas ele ficará para a próxima gestão. “Paguei boa parte da dívida, mas não tem como pagar tudo na minha gestão”, disse. Diferente da situação do TJAM, no TCE o número de beneficiados com o pagamento da PAE é menor.
Têm direito ao benefício os conselheiros que já atuavam no TCE em 2002, os auditores e os procuradores de contas, além de aposentados e pensionistas dos que exerceram esses cargos. O TCE pagou uma parcela de R$ 210 mil em outubro de 2010, três parcelas de R$ 100 mil em 2012 (em junho, agosto e outubro) e duas parcelas de R$ R$ 100 mil este ano (em fevereiro e abril). Desterro disse que antes do fim do ano, o TCE deve pagar mais uma parcela.
A PAE no MP-AM
No Ministério Público, as parcelas são pagas mensalmente. O pagamento foi iniciado em dezembro de 2010. Quando anunciou o início do pagamento, o procurador-geral de Justiça, Francisco Cruz, informou que 273 pessoas seriam beneficiados com o pagamento, entre esses estavam 266 membros do MP-AM (20 Procuradores de Justiça, 78 Promotores de Justiça de 2ª Entrância, 43 Promotores de Justiça de 1ª Entrância, 80 aposentados, 36 pensionistas (correspondente a 29 membros falecidos) e 16 ex-procuradores e ex-promotores.
Entre os ex-procuradores estão o ministro do Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell Marques e a desembargadora do TJAM Maria do Perpétuo Socorro Guedes.
O MP-AM começou o pagamento com parcelas mensais de R$ 5 mil, depois elevou para R$ 6 mil. Este ano, a parcela foi reajustada para R$ 7 mil. A previsão inicial da Procuradoria Geral de Justiça era terminar de pagar a dívida no período de 10 a 15 anos. Consultado esta semana, Francisco Cruz disse que a previsão é encerrar o pagamento em três anos (até 2016).
A reportagem questionou o PGJ sobre o montante pago e o montante devido aos membros do MP-AM, mas a assessoria informou que os dados estavam disponíveis no portal da instituição. No portal há dados apenas do que já foi pago. Considerando os valores individuais e a quantidade de pessoas, o montante pago chega a R$ 60 milhões, sendo R$ 220 mil para cada beneficiado.
O procurador Francisco Cruz disse não ter os números de cabeça, mas informou que os dados estão disponíveis no site do MP-AM. Quando iniciou o pagamento, o MP-AM fez uma projeção da dívida e concluiu que ela seria de R$ 40 milhões.
O MP-AM estabeleceu que os valores serão assim corrigidos: aplicação de correção monetária pela UFIR, até outubro de 2000, conjugado com o INPC do IBGE até o final do período e juros de mora calculados a base de 1.0% a.m (um por cento ao mês) até agosto de 2001 e de 0.5% a.m (meio por cento ao mês) no período restante.
Como surgiu a PAE
A Parcela Autônoma de Equivalência (PAE) foi criada pelo Supremo Tribunal Federal (TSE) para equiparar os salários dos ministros da Suprema Corte aos de parlamentares do Congresso Nacional, que no início da década de 1990 ganhavam mais do que os membros do Judiciário. O reajuste estava amparado pela Constituição Federal, que reza sobre a isonomia salarial entre os Três Poderes.
Feita a correção, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) ingressou com uma ação no STF alegando que não foi considerado no cálculo da PAE o auxílio-moradia dos deputados federais. A Ajufe interpretava uma série de atos da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e concluía que o pagamento do auxílio-moradia, feito apenas aos parlamentares que não tinham apartamento funcional em Brasília, tinha caráter remuneratório.
Os juízes federais chegaram a essa conclusão porque um dos atos da Mesa da Câmara determinava que “a comprovação, ou não, das despesas com a moradia ou estadia no Distrito Federal importa em dois tratamentos distintos: havendo comprovação das despesas, o Sr. deputado recebe o valor integral do auxílio-moradia; não havendo comprovação das despesas, o Sr. deputado recebe o valor do auxílio-moradia, com desconto do imposto de renda” (texto do Acórdão da Ação Originária 630 – STF) . Assim sendo, disseram os juízes, os valores pagos com desconto do imposto de renda caracteriza salário.
E assim se fez. O STF aceitou o argumento da Ajufe e incorporou à PAE o auxílio-moradia dos deputados, que à época era de R$ 3 mil, pelo período de 9 anos (1994 a 2002), com juros e correção monetária.
No acórdão do STF, o ministro relator Nelson Jobim assim justificou a sua decisão: “Observo que os sucessivos Atos da Mesa da Câmara dos Deputados deram tratamento remuneratório ao auxílio-moradia. É o que se segue da regra que impõe o desconto do imposto de renda na hipótese de não serem comprovadas as despesas ‘com a moradia ou estadia no Distrito Federal’. Com isso, o auxílio-moradia, tal qual regrado pelos Atos da Mesa da Câmara dos Deputados, não participa da categoria de verba indenizatória. Dois fatos negativos autorizam essa afirmação: (a) o fato negativo de não residir em imóvel funcional e (b) o fato negativo da não comprovação de despesas. Do primeiro decorre o direito à percepção do auxílio-moradia. Do segundo, a obrigação da administração descontar imposto de renda. Desse conjunto de fatos negativos se segue o tratamento remuneratório dado ao auxílio-moradia.”
E assim surgiu a dívida bilionária, que a sociedade está obrigada a pagar. Todos os Tribunais de Justiça do país recorreram ao STF para ganhar o mesmo benefício concedido aos juízes federais. Houve um efeito cascata que se estendeu também ao Ministério Público e aos tribunais de contas.