MANAUS – Do jeito que está, a nova Lei Eleitoral, com as alterações promovidas pela minirreforma realizada no ano passado, poderá deixar municípios do interior do Estado do Amazonas sem dinheiro para as campanhas eleitorais. É o que diz o advogado e cientista político Carlos Santiago, que coordena a Comissão de Reforma e Ética na Política da OAB-AM (Ordem dos Advogados do Brasil-Amazonas) e vai representar a entidade no Comitê das Entidades da Sociedade Civil Contra o Caixa 2 nas Campanhas Eleitorais. A minirreforma eleitoral trouxe diversos avanços, na opinião de Santiago, o principal deles, o fim de financiamento de campanhas eleitorais por empresas. Com isso, o dinheiro para as campanhas eleitorais, já a partir deste ano, terá duas origens básicas: o Fundo Partidário e as doações por pessoas físicas, ou seja, pelos eleitores. O problema está exatamente nesta segunda fonte. A lei diz que o valor da doação poderá ser cruzado com o valor constante na declaração anual do Imposto de Renda do ano anterior, e é sabido que no interior do Estado a grande maioria não declara renda. Na entrevista concedida ao jornalista Valmir Lima, Santiago também fala do combate ao caixa 2 nas eleições e dos avanços na Lei Eleitoral brasileira nas últimas décadas. Confira.
AMAZONAS ATUAL – O movimento pela ética na política é antigo no Brasil. Eu me lembro de que na década de 1980, os movimentos sociais e a juventude já estavam nas ruas cobrando mais ética na política; o padre Humberto Guidoti era um baluarte desse movimento aqui no Amazonas. Tu consegues enxergar avanços significativos no sentido de mudança na política brasileira?
CARLOS SANTIAGO – Percebo muitos avanços, sim. A OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e o MCCE [Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral] vêm ao longo das últimas décadas se articulando com a sociedade, com os movimentos sociais no sentido de melhorar a qualidade da política e trazer mais ética, porque melhorar a qualidade da política é trazer ética para a política. A ética que as entidades defendem é o exercício da política para o bem comum. Nós conseguimos, no ano de 1999, fazer com que o Congresso Nacional aprovasse uma lei de iniciativa popular ligada a esse tema, que é a Lei 9.840, que pune com cassação do registro de candidatura ou diploma o político que usar a máquina pública em benefício da eleição dele, o político que doar ou manter uma relação promíscua com o eleitor em troca de voto ou favores. E essa lei cassou centenas de políticos no país todo, inclusive, deu base jurídica para a cassação do atual governador do Amazonas, que usou no período eleitoral a política para fazer a compra de votos, segundo a Justiça Eleitoral. E depois, esse movimento também conseguiu fazer com que a sociedade brasileira entendesse que o político bom é o político que tem ficha limpa, uma pessoa que não tem crime julgados pelos tribunais. Por conta disso, a sociedade civil e os movimentos sociais foram às ruas, coletaram assinaturas e propuseram um projeto de lei, que é a Lei da Ficha Limpa, que também excluiu centenas de políticos da vida pública. E agora, mais recentemente, essas entidades também fizeram uma mobilização nacional pela reforma política, Não conseguimos êxito no Congresso Nacional, mas conseguimos, êxito perante o Supremo Tribunal Federal , no sentido de brecar o caixa 2 nas eleições. Então, a trajetória da OAB, da CNBB, do MCCE e da sociedade civil organizada, que são inúmeras entidades, conseguiu melhorar, sim, a qualidade da política no país. O próximo desfio é barrar as articulações em torno do caixa 2
ATUAL – Do ponto de vista do eleitor, você acha que mudou muita coisa. Por exemplo, o eleitor hoje não venderia mais o voto? Eu, particularmente, suspeito de que se o eleitor tiver uma oportunidade, ele vende o voto.
SANTIAGO – A legislação, às vezes, é muito mais rápida do que a cultura, do que as relações culturais. Hoje temos leis extremamente modernas, até por conta dessas instituições que estão empenhadas em melhorar a qualidade da política, mas existe uma cultura muito forte, tanto nos partidos políticos como nas associações e até no dia a dia da população, de achar que a política se faz com troca, com favores. E a sociedade precisa entender sobretudo que a política é um espaço do bem para todos e não para algumas pessoas em proveito próprio.
ATUAL – Mas essa questão que envolve a venda do voto não está muito relacionado à baixa qualidade dos políticos e da política. Por exemplo, o eleitor pensa o seguinte: “Todo político promete e a gente sabe que ele não cumpre, então, eu voto naquele que me dá alguma coisa antes da eleição, porque sei que depois da eleição eu não vou ganhar nada”.
SANTIAGO – Eu volto a insistir: isso é uma cultura que se tinha no Brasil de se achar que a política era o espaço dos interesses individuais. É melhor eu ganhar algo de imediato, o que gerava essa relação de troca. Claro, isso é incentivado pela própria qualidade da classe política. É por isso que nós temos que dizer de forma clara que político que compra voto, político que usa o caixa 2, político que engana as pessoas, na hora do processo de escolha dos representantes não merece o voto do eleitor, porque, uma vez eleito, será um péssimo parlamentar ou um péssimo governante. Eu acho que nos últimos anos, com a crise econômica e a crise de valores na política, as pessoas foram para as ruas e acho que estamos conseguindo mudar essa cultura do interesse próprio pela cultura do interesse coletivo.
ATUAL – Para as próximas eleições, quais são as principais mudanças na legislação e que vão impactar a forma de fazer política?
SANTIAGO – A grande mudança foi o fim do financiamento eleitoral por empresas. Eu acho que o fim do financiamento empresarial é um marco na história do Brasil no sentido de que hoje as eleições passam a ter um patamar de custo, o que não havia nas eleições anteriores. O custo passa a ter um valor determinado e o candidato não vai poder gastar mais do que aquele teto. O entendimento do Supremo Tribunal Federal é de que o financiamento empresarial de campanhas eleitoral é inconstitucional, porque a Constituição Federal diz que o poder emana do povo e as empresas não são “povo” para poder interferir no processo democrático, como vinha acontecendo. Então, eu acho que, acima de tudo, o fim do financiamento empresarial é um avanço, mas nós apostamos que o avanço também caminha no sentido de combater o uso de caixa 2.
ATUAL – A gente sabe que até as eleições passadas as empresas doavam para os candidatos, mas algumas doavam só parte dos recursos legalmente, e outra parte chegava sem entrar na contabilidade do candidato. Essa doação não declarada, que caracteriza o caixa 2, não pode ocorrer mesmo com a proibição de empresas financiarem campanhas eleitorais?
SANTIAGO – Vamos lá: a grande mudança na legislação, como já disse, foi o fim do financiamento empresarial. Isso vai conter um pouco o abuso do poder econômico e a interferência do poder econômico na escolha dos representantes políticos. Antes existia um desnivelamento dos candidatos porque as campanhas eram desequilibradas. O outro ganho que tivemos na legislação é a redução do tempo de campanha, de 90 para 45 dias. Isso vai reduzir os custos das campanhas. E outro aspecto interessante é que agora no período pré-eleitoral os pretensos candidatos vão poder fazer o debate político com o eleitor. A política não pode mais ser criminalizada, como na legislação anterior, em que você sequer podia dizer que estava pretendendo ser candidato nas eleições seguintes. Só não pode é pedir voto, porque ainda não há candidatura antes do pedido de registro de candidatura. Com isso, a gente pode trazer mais a política para as escolas, para os bares, para as esquinas, para as associações de bairros. A legislação vem no sentido de dar a oportunidade de o eleitor e os futuros candidatos discutirem os problemas da cidade e dar à política um caráter avançado. Agora, com relação ao caixa 2…
ATUAL – Antes de você responder sobre isso, eu gostaria que a gente conceituasse o caixa 2. O que é o caixa 2?
SANTIAGO – O caixa 2 é tudo aquilo que não é autorizado por lei. Ou seja: a lei diz que você tem que prestar contas de determinado valor e você omite. A legislação diz que todo gasto de campanha deve ser declarado perante a Justiça Eleitoral. Aí, você não declara, ou declara apenas parte dos gastos. À medida que você não declara, isso se torna um caixa 2.
ATUAL – Os candidatos precisam abrir uma conta com CNPJ para que as receitas ou o dinheiro para financiamento de campanha entrem nessa conta. Isso é o caixa 1. O caixa 2 seria o que não entra nessa conta do candidato, mas ele usa para pagar despesas não declaradas?
SANTIAGO – Por essa nova legislação, fica autorizado apenas a doação individual de eleitores, até 10% do valor do ganho bruto dele no ano anterior às eleições, e também o dinheiro do Fundo Partidário para financiar as campanhas eleitorais. Os candidatos vão ter um prazo que se encerra no dia 15 de agosto para apresentar pedido de registro de candidatura, e só depois ele recebe um CNPJ da Justiça Eleitoral e os bancos têm até 3 dias para abrir uma conta. Depois que o candidato abre a conta, fica autorizado a receber a doação de eleitores. Depois de recebida a doação, o candidato é obrigado em até 72 horas declarar essa doação em um site, que será criado pelo Tribunal Superior Eleitoral.
ATUAL – As doações vão poder ser feitas apenas por via bancária?
SANTIAGO – Sim, no caso da doação em dinheiro, sem obrigatoriedade apenas em cidades sem agências e postos bancários. Também existem doações de bens móveis, que são somente estimados em dinheiro.
ATUAL – O doador não pode meter a mão no bolso e doar R$ 50,00 para um candidato durante uma reunião de campanha?
SANTIAGO – Não. A doação tem que ser feita via bancária e, mais do que isso, esse recurso vai constar como recurso doado, com a identificação do CPF do doador. Mesmo que ele doe para o partido político, no momento que o partido transfere para o candidato, terá que identificar a origem do recurso. E o eleitor, à medida que ele doa, a Receita Federal poderá fazer um cruzamento para saber se o valor doado realmente está dentro do patamar de 10% da renda dele no ano que antecede as eleições.
ATUAL – Então, esse é o dinheiro que vai entrar no caixa de campanha do candidato. Mas o caixa 2 é um caixa paralelo a esse, onde entra dinheiro de doações ilícitas, e ele sempre existiu com a legislação anterior. Há alguma garantia de que isso não vai mais acontecer?
SANTIAGO – A corrupção é como água: ela sempre vai buscar uma brecha, sempre vai tentar romper barreiras. Sempre é muito difícil se combater a corrupção. Aliás, os grandes escândalos servem justamente para isso, para que o Estado e a sociedade se reorganizem para que não haja mais as brechas encontradas nos escândalos. Claro que vai ter político, vai ter seguimentos da sociedade que por tradição de usar esses métodos para fazer política e principalmente nas campanhas, vai tentar continuar fazendo da mesma forma que fazia antes. Mas a legislação, com o fim do financiamento empresarial, também traz algo interessante, porque qualquer pessoa poderá visualizar e acompanhar esses gastos. E também vai ser estabelecido um valor do gasto de campanha. O candidato só vai poder gastar aquele valor. Antes, não, o candidato estimava o valor e, às vezes, muito alto. Hoje, não. Na cidade de Manaus, por exemplo, na eleição para prefeito, terá que ser gasto, no máximo, R$ 6,7 milhões.
ATUAL – De onde vem esse valor?
SANTIAGO – Vem da nova lei, criada com a minirreforma eleitoral. Como a lei reduziu o tempo de campanha, o tempo de televisão pela metade, também reduziu os custos das campanhas pela metade. A lei diz que em cidades onde houve segundo turno nas eleições de 2012, o gasto máximo será de 50% do maior valor declarado naquelas eleições. E o maior gasto na eleições daquele ano foi da candidata Vanessa Grazziotin, que declarou R$ 13,4 milhões, e 50% disso dá R$ 6,7 milhões no primeiro turno. Para o segundo turno, acrescenta mais 20% desse valor. Eu acho que isso vai inibir o caixa 2, porque o candidato vai ter um limite de gasto e todo o dinheiro que ele receber vai estar disponível também para consulta. E você vai começar a identificar quem de fato está fazendo uma campanha suntuosa, cara, mas não consta na base de dados do candidato. Então, esse candidato poderá ser objeto de investigação rapidamente, porque está saltando aos olhos do cidadão e dos órgãos de fiscalização que a campanha está com um volume de recurso altíssimo, mas isso não está constando no site em que ele é obrigado a declarar o que recebeu e o que gastou.
ATUAL – Quando a lei obriga que o eleitor só pode doar 10% daquilo que ele declara como renda um ano antes da eleição, isso não vai dificultar as doações, principalmente no interior do Estado do Amazonas?
SANTIAGO – Há uma discussão que foi iniciada e que está sendo feita no país inteiro sobre a situação do eleitor que quer doar mas não tem renda declarada na Receita Federal. A legislação fala do percentual que pode ser doado e da possibilidade de um cruzamento desse valor com o que foi declarado na Receita. O grande problema é que uma parte significativa da população, por falta de renda mesmo, não faz declaração de Imposto de Renda, porque tá na linha daqueles que estão isentos de declarar. Logo, essas pessoas terão muita dificuldade em fazer doação.
ATUAL – Essas pessoas, certamente, não poderão doar?
SANTIAGO – A Justiça Eleitoral definir de forma clara qual o caminho para esses cidadãos brasileiros que hoje teriam dificuldade. No Rio de Janeiro, por exemplo, muitos militantes de movimentos ideológicos foram acionados pelo Ministério Público Eleitoral na Justiça porque fizeram doações de R$ 50,00 a R$ 200,00 e estavam naquela faixa que não tinha renda suficiente para fazer doação. Então, as eleições deste ano vão ser importantes porque vão exigir o aprimoramento da legislação. E isso é necessário, porque, por exemplo, alguns municípios do interior do Estado do Amazonas pouquíssimos eleitores são obrigados a fazer declaração do Imposto de Renda.
ATUAL – Isso poderia, inclusive, inviabilizar as eleições no interior do Estado, porque o fundo partidário em alguns desses municípios é quase zero. E se não houver doação de pessoas físicas, vai faltar recursos para as campanhas. Ou o candidato vai ter que fazer uma campanha sem dinheiro.
SANTIAGO – Além disso, a legislação também define um teto de gastos de acordo com o número de eleitores do município. Por exemplo, uma cidade de 10 mil eleitores, o candidato a prefeito poderá gastar, no máximo, R$ 100 mil. Isso significa que no interior do Estado poderá faltar dinheiro para fazer grandes campanhas, mas também quem tem muito dinheiro para gastar, não terá superioridade em relação aos concorrentes, porque estará limitado a um teto. Haverá uma restrição em relação ao tamanho dos gastos.
ATUAL – Essa legislação pode fazer com que aquele candidato empresário que financiava a própria campanha deixe de existir?
SANTIAGO – O candidato pode botar dinheiro na campanha dele, mas naquele percentual de qualquer eleitor: 10% sobre os ganhos brutos do ano anterior à eleição.
ATUAL – Antes o empresário tinha, por exemplo, uma rede de postos de combustíveis no município e decidia ser candidato. Metade dos gastos de campanha era bancada por ele próprio, ele mesmo investia na campanha. Isso acabou?
SANTIAGO – Acabou. Mas o que a legislação realmente quer é que pequenas lideranças políticas, líderes de movimento social, cidadãos que não tinham condições financeiras de disputar, mas tinham boas ideias, possam ser estimulados a participar do processo político.
ATUAL – Com a redução do tempo de campanha e com menos dinheiro para gastar, não vai ocorrer de muitos candidatos nem ficarem conhecidos do eleitorado?
SANTIAGO – Mas é exatamente por isso que essa nova legislação libera o pré-candidato para as atividades políticas na pré-campanha. Você pode fazer reuniões, visitar comunidades, discutir os problemas dos bairros com os eleitores, pode conceder entrevistas, pode usar as redes sociais. Só não pode pedir voto antes do período estabelecido para a campanha eleitoral, porque não está autorizado, ainda não é candidato registrado. Toda atividade política está liberada desde agora. Antes, havia uma criminalização.