Por Katna Baran, da Folhapress
CURITIBA – Após fazer um discurso crítico aos ataques do presidente Jair Bolsonaro à imprensa, o professor da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) Felipe Boff, 40, deixou escoltado o auditório onde ocorria uma formatura do curso de jornalismo, da qual ele era paraninfo, em São Leopoldo (RS).
A fala de Boff, na última sexta-feira, 6, havia sido abafada por vaias e agressões verbais da plateia, composta por cerca de 700 pessoas, convidados dos 34 formandos da área de comunicação, sendo 21 de jornalismo.
Um vídeo do episódio foi compartilhado nas redes sociais por um dos críticos ao discurso. As imagens mostram que, enquanto Boff falava, parte da plateia vaiava e gritava “chega”. “Professor metendo o pau no presidente, estragando a formatura dos formandos. Que vergonha, olha o que esse cara está fazendo!”, disse o homem que gravava o vídeo.
Quando as vaias ficaram mais fortes, professores e alunos que estavam no palco se levantaram e aplaudiram a fala. Em apoio a Boff, colegas que o acompanhavam na mesa oficial da cerimônia também se posicionaram atrás dele.
Professor de jornalismo na Unisinos, Boff explicou que a escolta por seguranças da instituição foi oferecida pela própria organização do evento, para evitar ataques após o ocorrido durante a fala dele na formatura. Ele afirmou que, apesar da medida, não houve agressões posteriores e que, já na recepção, foi cumprimentado por grande parte de alunos e familiares presentes na cerimônia.
No discurso, o professor afirmou que “a imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar”. Ele elencou alguns dos ataques de Bolsonaro contra profissionais, como à repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, contra a qual dirigiu ofensas de cunho sexual. Ela apresentou à Justiça uma ação com pedido de indenização por danos morais contra o presidente.
Boff também citou o levantamento da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), que apontou que quase dez ataques por mês foram desferidos pelo presidente a jornalistas, veículos de comunicação e à imprensa, em geral em suas redes sociais, no primeiro ano de governo.
“Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem -estes que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece”, completou o professor aos presentes.
A repercussão negativa de parte da plateia sobre o discurso, para Boff, mostra a dimensão do ataque à liberdade de imprensa no Brasil.
“Principalmente porque o presidente incita esse tipo de atitude, de censurar, de tentar calar jornalistas na marra. Se a maior autoridade da nação se sente à vontade para xingar jornalistas, por que o seu apoiador não se sentiria?”, disse à reportagem.
Para o professor, o episódio, apesar de lamentável, ajudou a propagar a mensagem que gostaria de passar com o discurso de formatura. “É para despertar as pessoas a também defenderem a imprensa, já que amanhã podem ser as novas vítimas”, afirmou.
Em nota, a Unisinos afirmou que respeita as diversas posições e que preserva e estimula a pluralidade de ideias e, por isso, os professores escolhidos pelos alunos como paraninfos “têm o direito de fazer uso da palavra e liberdade para se expressarem conforme suas convicções pessoais”.
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e a Federação Nacional dos Jornalistas manifestaram solidariedade ao professor, afirmando que “repudiam toda e qualquer forma de ataque à liberdade de expressão e de pensamento”.
As entidades afirmam que a ação contra o discurso “representa uma intimidação à atividade profissional e é condenável”.
Abaixo, o discurso do professor na íntegra:
A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar.
Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog.
Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade.
Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa.
É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.
No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias.
Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.”
É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas.
Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade.
Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos.
O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019.
O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos.
Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.”
Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou.
Redobrou os ataques à imprensa.
Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral.
Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF.
E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos.
Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais.
Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções.
Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”.
Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário.
Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje.
Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”.
Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas.
Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento.
Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.
Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh.
Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”.
Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”.
Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977.
Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano.
Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”.
Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.