Por Iolanda Ventura, da Redação
MANAUS – O empresariado critica o protesto como forma de luta política, mas foi por este meio que conseguiu a reabertura do comércio presencial em Manaus, afirma Maurício Brilhante, doutor em Administração Pública e Governo e professor da Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
Brilhante atribui à classe a responsabilidade por parte das consequências dessa decisão nas próximas semanas e critica os empresários por não se emprenharem em cobrar a vacina, solução definitiva para a situação dfa pandemia.
Na avaliação de Mauricio Brilhante, , a flexibilização que permitiu a reabertura do comércio na última segunda-feira, 28, em Manaus foi uma decisão política e não baseada em fatos. “Portanto, os resultados a se manifestarem nos próximos 45, 60 dias serão atribuídos à política”.
Em engtrevista ao ATUAL, Brilhante fala sobre a falta de vacinação em meio ao aumento de casos de Covid-19 no estado e a flexibilização do comércio.
ATUAL – Em meio à pandemia, assuntos importantes como a vacinação acabaram sendo politizados. Como isso ameaça a política de imunização do Brasil e torna mais difícil o combate à doença?
Maurício Brilhante – A politização de temas como o papel do SUS, o papel do Estado, da medicina preventiva, das liberdades individuais, da eficácia das vacinas em geral, do direito de todos a acessarem imunizantes enfrentam forças políticas que relativizam o valor de vidas em detrimento, por exemplo, de interesses como o ajuste fiscal em contas públicas ou ainda do jogo do poder, no sentido eleitoral, em que atores com poder de decisão tomam decisões visando manter o apoio político às suas candidaturas e plataformas político-ideológicas.
No meu ponto de vista, essa grave situação de ininterrupta disputa eleitoral, incapacidade de liderança e de promoção de um diálogo institucional amplo, pautado no interesse da preservação da saúde e da vida, não tornará mais difícil só a luta contra a doença, mas todos os aspectos da vida em sociedade. Sem a imunização em massa não conseguiremos retomar nossas atividades econômicas e sociais, além de ficarmos isolados internacionalmente. A vacinação já iniciou ou se iniciará em breve em cerca de 40 países e logo esses países deverão impor restrições aos interessados em visitas de turismo e negócio que não estiverem vacinados.
Quais devem ser os papéis das administrações públicas federal e estadual na viabilização da vacina?
M.B – No meu ponto de vista, caberia ao governo federal a liderança, a clareza de um cronograma, dos custos e de toda a política de imunização, a ser implementada pelos governos locais, nos municípios que forem capazes de fazê-lo autonomamente, e com a ajuda do Estado, naqueles municípios de estrutura mais precária.
Seria muito positivo se o Poder Executivo Federal exercesse um papel de liderança da União, envolvendo em um diálogo produtivo, transparente e focado no bem-estar da população, convocando respeitosamente e com foco em resultados os poderes Legislativo e Judiciário, bem como os governos subnacionais – estados, municípios e outros poderes locais. Infelizmente o que vemos não é apenas a dificuldade de administrar e minimizar conflitos, mas uma grande energia institucional gasta na fabricação de conflitos federativos.
Como você avalia a atuação do Governo do Amazonas no planejamento para imunizar a população?
M.B – Entendo que prioritariamente esse é uma competência da União, por envolver etapas sob a responsabilidade de órgãos federais, como Anvisa, Ministério da Saúde e mesmo o Ministério da Economia, tanto com o aporte financeiro, quanto em relação ao desembaraço de importação.
Ainda que a saúde seja promovida de forma concorrente pelos governos federal, estaduais e municipais, meu entendimento é que para que não houvesse custos duplicados e desperdício de esforço, tempo e recursos, o ideal seria contar com um planejamento central, em que os governos subnacionais atuariam de forma complementar. Infelizmente, diferente do que já ocorre em mais de 40 países, o Governo Federal parece não estar conseguindo elaborar e implementar uma política de imunização para a Covid-19, o que poderá causar grande confusão administrativa entre os entes federados.
Em meio às incertezas sobre o início da vacinação, o Amazonas vive um aumento de casos da Covid-19. Em virtude disso, o governador Wilson Lima chegou a proibir o funcionamento presencial do comércio, mas voltou atrás e flexibilizou o decreto devido aos protestos de comerciantes. Foi uma decisão correta?
M.B – Fiz várias reflexões sobre a rápida flexibilização das medidas protetivas anunciadas pelo governo do estado. Acho que elas mostram o valor dos protestos, muitas vezes criticados pelo campo da direita e pelo empresariado que desqualificam os protestos como uma opção da luta política.
A situação que levou à reversão da decisão mostra que a política no sentido do diálogo e da negociação entre pessoas com ideias e interesses diferentes é o único caminho para a solução dos problemas que enfrentamos como sociedade. Quanto mais grave o problema, mais habilidade política é necessária para resolvê-los.
No que pese a importância da política e do jogo do poder para tomar decisões, medidas acertadas são tomadas em cima de fatos, números, dados e análises profissionais. O que fora comunicado pelas entidades de classe, políticos e órgãos acerca da reunião me pareceu pobre em dados e fatos, o que me leva a entender que a decisão de flexibilizar foi tomada distante da razão, dados e fatos e muito perto da política.
Efeitos negativos da medida podem ser atribuídos ao governo?
M.B – Sim. Os resultados a se manifestarem nos próximos 45, 60 dias serão atribuídos à política. Neste sentido, creio eu que o governador Wilson Lima, para o bem ou para o mal, será quem absorverá os resultados da flexibilização. De certa forma não é novidade, pois ele já vem sendo responsabilizado por inúmeros problemas causados pela pandemia no Amazonas. Muito mais do que o prefeito ou o presidente (a quem, no meu ponto de vista, cabe maior responsabilização, em virtude das competências definidas pela constituição e da forma como vem exercendo sua liderança).
No entanto, cabe ressaltar que embora o decreto de flexibilização tenha sido assinado pelo governador e dez secretários de Estado, do meu ponto de vista os empresários e entidades que participaram da reunião aumentaram sua fatia de responsabilidade nos resultados que virão desta decisão, pois estes não poderão ser atribuídos apenas ao ator político institucional, o governador. Uma vez que empresários jogaram o jogo do poder e influenciaram a decisão em favor dos seus legítimos interesses, mas que não são os únicos no espectro da sociedade como um todo, o que há de vir será responsabilidade de todos, especialmente dos que tinham interesse na flexibilização.
Como isso afeta a liderança política?
M.B – Por fim, fiquei com a impressão de que a liderança e autoridade do governo do estado estão prejudicadas. O Governo como um todo mostrou-se incapaz de segurar a decisão tomada, mediante, convenhamos, uns poucos manifestantes comparados ao total da população. Ainda assim refez o posicionamento do governo. Voltar atrás numa decisão errada é um dos mais admiráveis atos de um gestor, líder ou político. Geralmente, ao se assumir o erro, mostra-se os motivos. As mais de 800 internações e o eminente novo colapso nos sistemas de saúde público e privado do Estado exigem motivos muito robustos para uma flexibilização.
De que forma o governo estadual pode equilibrar a manutenção da renda dos trabalhadores com as medidas de contenção da Covid-19?
M.B – A questão econômica também é uma competência concorrente entre os entes federados, em que a União tem o maior poder de ação, não apenas pela capacidade financeira e de endividamento, mas também por contar com estruturas institucionais que já se mostraram capazes de implementar políticas industriais, de desenvolvimento e sociais e que foram aperfeiçoadas desde 1988, especialmente no período 1994-2016, mas que estão sofrendo desmonte.
Creio que o papel dos estados é subsidiário à política econômica e de produção nacional, que já não era antes da pandemia nem clara e nem eficaz em geração de emprego e renda, pelo contrário vinha refletindo em forte inflação e precariedade das condições de trabalho. Neste sentido, o Estado deve ajudar os municípios a criarem políticas para não deixar que a população em risco alimentar aumente e que a miséria se espalhe. Não me refiro ao emprego e renda. Me refiro à proteção social, mediante a situação econômica, que só poderá melhorar efetivamente com a vacinação em massa.
Em sua visão, houve compromisso da parte dos empresários, como donos de lojas, restaurantes e bares, e dos clientes em seguir as medidas contra a Covid-19?
M.B – Não posso generalizar, sei que há empresas agindo muito responsavelmente, porém também existe muita irresponsabilidade empresarial e individual. Entendo que muitos representantes de entidades de classe empresarial sejam pressionados a ter um discurso mais enérgico, mas entendo que todos somos responsáveis por nossa sobrevivência, todos nós, não só pela nossa própria sobrevivência como dos outros, não importa se é uma ou cem vidas por dia que poderiam ser poupadas com algumas adaptações temporárias. Devemos cada um de nós fazer nossa parte, cumprir os protocolos.
Falta união da sociedade nesse sentido?
M.B – O que me deixa mais surpreso é que mesmo agora diante do colapso do sistema privado e da eminência do colapso do sistema público, não haja uma postura mais colaborativa de todos, cidadãos e empresas, especialmente das lideranças e entidades de classe do empresariado. Muitos empresários agiram como se estivessem sendo obrigados a não trabalhar, o que em muitos casos não cabe, pois o decreto pedia uma reorganização das atividades, por exemplo para entrega por delivery ou drive-thru, durante um período, relativamente curto de tempo.
Por outro lado, me sensibilizo com o empresariado, uma vez que não há perspectiva de médio e curto prazo de vacinação e imunização em massa. Curiosamente, não vejo o mesmo empenho destas entidades de classe e daquelas pessoas que foram às ruas cobrar rapidez da vacinação universal, que é a única e definitiva solução para a situação. Quanto mais tardar, mais vezes teremos que enfrentar o problema do colapso da saúde e das interrupções sazonais.
No primeiro dia de reabertura do comércio, segunda-feira, 28, o Centro de Manaus lotou com registro de consumidores sem máscara e aglomerações nas ruas. Qual seria a medida que o Estado deveria pôr em prática para evitar esse tipo de comportamento da população?
M.B – Acho que os comitês de combate à Covid podem envolver mais as atividades de comunicação. É possível comunicar melhor e seria interessante que não fosse uma iniciativa exclusiva do Estado, mas da iniciativa privada, das organizações da sociedade civil e sobretudo da União. Não podemos ignorar que muitas informações conflitantes com a necessidade de proteção individual vêm sendo emitidas por autoridades do Governo Federal.
Você acredita que só com trabalhos de conscientização é possível fazer com que as pessoas sigam as regras?
M.B – Acho que fundamentalmente a comunicação, a liderança responsável e a transparência dos dados são o fator principal, mas o Estado pode usar seu poder de constrangimento. Um bom exemplo disso foi a implementação da lei anti-fumo em São Paulo, pelo então prefeito, José Serra. Houve, comunicação, envolvimento, responsabilização mútua, mas também houve fiscalização e punições, no caso advertências e multas. Mas em uma situação emergencial, o melhor é uma liderança confiável e eficaz no convencimento e transparência.
O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, chegou a sancionar uma lei que permitia multar quem circulasse sem máscara. Porém, a norma nunca saiu do papel já que não foi definido quem fiscalizaria. Como esse tipo de atitude abre brechas para que a população não leve a sério as determinações contra a Covid-19?
M.B – Creio que faltou o planejamento e implementação de políticas mais eficazes tanto na comunicação, como na fiscalização. A prefeitura, nesses últimos dias de dezembro, pouco fez para participar da gestão dessa crise atual da Covid concentrando-se em inaugurar às pressas obras ainda por serem finalizadas. Talvez o momento da transição tenha causado isso.
Pelo que pude notar, o prefeito eleito, David Almeida (Avante), deverá participar mais ativamente da gestão dessa crise, em parceria institucional com Estado e União tão logo assuma. Como liderança recém-aprovada nas urnas, o futuro prefeito é detentor de grande popularidade e aceitação e iniciará o mandato numa crise enorme, que se sobressairá diante dos muitos problemas da cidade de Manaus. Desejo sorte a nova gestão, que deverá refazer essas medidas ineficazes até aqui.
Raio-X
Mauricio Brilhante de Mendonça
Doutor em Administração Pública e Governo (FGV-SP)
Professor Adjunto do Departamento de Administração da Ufam
Grupo de Pesquisa em Administração Pública, Governo e Sociedade (GPAPGES)