Por Vinicius Sassine, da Folhapress
MANAUS – Documentos do processo de licenciamento ambiental da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), apontaram risco de mais grilagem de terras públicas no curso da rodovia em caso de pavimentação, mesmo se houver medidas de mitigação dos impactos da obra.
Os documentos alertam ainda para o risco de ampliação do desmatamento ilegal, especialmente com a intensificação da exploração criminosa de madeira.
Os apontamentos foram feitos em pareceres técnicos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e em documentos que compõem o chamado EIA/Rima (estudo e relatório de impacto ambiental), exigido para empreendimentos do tipo. O EIA/Rima mais recente foi concluído em 2021.
O presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, emitiu no último dia 28 a licença prévia para a pavimentação do trecho do meio da BR-319, entre os quilômetros 250 e 655,7 -uma extensão de 405,7 quilômetros.
A licença prévia é uma fase inicial do licenciamento, que atesta a viabilidade ambiental do empreendimento e antecede a licença de instalação. Foi, até agora, o principal passo do processo de licenciamento, em tramitação desde 2007.
O ato de Bim foi comemorado e propagandeado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). O presidente é candidato à reeleição, e tem um discurso contrário à criação de unidades de conservação e à demarcação de terras indígenas na Amazônia. Em seu governo, o desmatamento do bioma teve um recorde em 15 anos, com mais de 13 mil km² devastados em 2021.
Os defensores da pavimentação argumentam que ela é necessária para a redução do isolamento de moradores dos dois estados conectados, Amazonas e Rondônia.
Já o Observatório BR-319, formado por uma rede de organizações da sociedade civil, pesquisadores e associações indígenas, emitiu um posicionamento contrário à concessão da licença prévia.
O grupo afirma que o processo atropelou etapas básicas, em especial a consulta a populações indígenas de cinco territórios e comunidades ribeirinhas e extrativistas diretamente impactadas com a obra.
Para o Observatório, a licença foi “evidentemente eleitoreira, com clara motivação política”. Não fica claro nem se houve o aceite formal do EIA/Rima produzido, conforme a organização, e houve uma redução expressiva do apontamento de terras indígenas impactadas, de 47 para 5.
Além disso, o Observatório apontou que a região da rodovia passou a ser amplamente desmatada, sendo essa região o novo arco de devastação da Amazônia.
Segundo os integrantes da organização, a falta de destinação de terras públicas é um problema grave, o que entrega essas terras “à sanha da grilagem”.
Em nota, o Ibama afirmou que a licença prévia atesta a viabilidade do empreendimento para a etapa de planejamento e ainda não autoriza a realização de obras. “O empreendedor precisa apresentar estudos que visem a mitigar todos os impactos ambientais previstos”, disse.
Os próprios documentos do processo de licenciamento -tanto de técnicos do Ibama quanto da empresa contratada pelo Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para o estudo de impacto ambiental- apontaram a grilagem como uma consequência da pavimentação do trecho do meio da BR-319.
Em 2005, técnicos do Ibama já afirmavam que a rodovia incrementa desmatamento, especulação fundiária e grilagem.
Fazendeiros e madeireiros ocupam terras públicas de forma ilegal, e tentam efetivar essa ocupação com criação de gado e retirada de madeira. O passo seguinte é a abertura de ramais e estradas conectadas à rodovia -gerando o efeito chamado “espinha de peixe”.
Quatro anos depois, outros pareceres técnicos do Ibama apontaram o mesmo efeito para a região. A grilagem de terras é uma das principais “interferências” em caso de pavimentação da rodovia, conforme os documentos, assim como o desmatamento e a retirada ilegal de madeira.
A consolidação de novas unidades de conservação foi citada como um caminho para se mitigar os efeitos do empreendimento.
A licença prévia emitida pelo presidente do Ibama, porém, previu a aquisição de apenas uma área para ser transformada em unidade de conservação de uso sustentável, com destinação exclusiva aos povos mura e munduruku. Os indígenas “tradicionalmente já habitam a região do Lago Capanã”, conforme a licença.
Os técnicos do Ibama estabeleceram que, antes da emissão da licença prévia para a pavimentação do trecho da rodovia, seria necessário uma série de medidas: executar imediatamente os recursos destinados ao plano de implementação de unidades de conservação, implantar ações de proteção e vigilância, elaborar um plano de regularização fundiária e levantar informações geográficas da região.
A reportagem questionou o Ibama se houve cumprimento das exigências técnicas para emissão da licença prévia. Não houve resposta.
Um primeiro EIA/Rima foi elaborado em 2009 pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas). Depois, conforme os documentos inseridos no sistema do Ibama, um EIA/Rima foi feito em 2020 e em 2021 pela empresa Engespro Engenharia, contratada pelo Dnit.
O estudo de impacto ambiental da empresa privada apontou, em diversos trechos, o risco de grilagem de terras públicas.
Trechos da rodovia sem unidades de conservação terão impactos diretos “mais intensos”, conforme o relatório de impacto ambiental de 2021. Esses impactos podem se estender por 15 quilômetros em cada margem da rodovia.
“Sem proteção nessas áreas, podem ocorrer ocupações ilegais, com a grilagem das terras, além de desmatamentos ilegais e construção de pequenas estradas não previstas”, cita o documento.
Um benefício da não pavimentação do trecho seria a “diminuição dos riscos de grilagem e ocupação irregular”. E um impacto negativo das obras, mesmo com adoção de medidas mitigadoras, seria “especulação imobiliária e grilagem”, conforme os cenários traçados pelo relatório.