O reconhecimento do direito humano à água e ao saneamento pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 28 de julho de 2010, é resultado de uma intensa batalha entre atores e interesses divergentes. Nesta ocasião, num clima de tensões e rivalidades, naquilo que foi considerada a maior vitória para o movimento pelo acesso à água, a Assembleia Geral da ONU promulgou a Resolução 64/292, denominada “o direito humano à água e ao saneamento”.
Adotada por 122 votos a favor, 41 abstenções e nenhum voto contrário, a Resolução afirmou a existência de um “direito à água potável e segura e ao saneamento como direito humano essencial para o gozo pleno da vida e de todos os direitos humanos”.
Esta batalha emergiu de forma mais evidente a partir da década de 1980. De um lado da trincheira, estavam as grandes corporações transnacionais (Lyonnaise des eaux, Nestlé e Coca-Cola), agências multilaterais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comercio) e vários países do Primeiro Mundo, que eram contra o reconhecimento da água como direito humano. Para estas entidades, a água devia ser considerada como um produto de compra e venda, cujo acesso teria que ocorrer através do pagamento, viabilizando o retorno total dos custos e despesas dos serviços.
Do outro lado, estavam as comunidades rurais, movimentos sociais e a maioria dos países da África e América do Sul, liderada pela Bolívia. Estas organizações queriam garantir que a água fosse um direito incondicional promovido pelo Estado, uma vez que sem ela a vida não é possível. Esta postura beneficiaria as populações mais pobres, que encontravam e encontram dificuldades de acesso à água potável por auferir uma renda excessivamente baixa.
Mesmo com esta vitória do movimento de acesso à agua, a lógica economicista já havia sido politicamente consolidada a partir da Conferência de Dublin sobre a Água e Meio Ambiente de 1992 (Irlanda), que estabeleceu um valor econômico para a água.
A partir desta época, os países foram estimulados pelas corporações multinacionais e, posteriormente, também pelo Conselho Mundial da água a privatizarem as suas empresas públicas, transferindo para a iniciativa privada os serviços de abastecimento hídrico.
Esta política prejudicou os setores populacionais mais vulneráveis espalhados pelo mundo, pois o acesso à água se tornou mais difícil, em virtude das dificuldades econômicas.
A privatização da água abriu mais um espaço de exploração capitalista e acumulação de riqueza (desigualdade social), além de estabelecer as condições para a violação dos direitos à água e ao saneamento em várias partes do planeta.
As informações mais recentes sobre os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus confirmam que a privatização prejudica as populações mais pobres, dificultando ainda mais o acesso delas a esses direitos essenciais.
De fato, as tarifas cobradas pela empresa privada são as mais caras da Amazônia e estão entre as mais elevadas do Brasil. Como resultado, ainda que não expressem as reais condições da capital amazonense, os últimos índices do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS 2017) indicam que a cobertura de redes de distribuição de água alcança somente 89,26% da população manauara, mantendo um total de 228.889 pessoas sem acesso à água potável. Quanto ao esgotamento sanitário, a empresa exclui dos serviços de tratamento de esgoto um total de 1.869.202 pessoas.
Este desempenho da concessionária Águas de Manaus a coloca como a 2ª pior capital da Amazônia e a 5ª pior entre as 100 maiores cidades do Brasil.
Além disso, o DataSUS/2017 (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) nos informa que na capital amazonense 1.899 pessoas são internadas por ano devido a doenças de veiculação hídrica, desembocando na morte de 34 delas. Não precisa dizer que estas pessoas pertencem às classes mais pobres, que sofrem com a falta de água potável e saneamento básico na cidade.
Esta situação tem sido exposta pelos Procons (Estadual e Municipal), quando eles revelam que a empresa se encontra, de forma recorrente, entre as mais acionadas da cidade no ranking de reclamações dos serviços públicos.
Apresar desta precariedade (ou graças a esta precariedade), os lucros da empresa são ampliados a cada ano. De acordo o SNIS, a tarifa de água, associada a uma assustadora tarifa de esgoto (100% do valor da água consumida), proporcionou para a empresa uma arrecadação de R$ 1 bilhão 676 milhões 740 mil nos últimos 5 anos, enquanto o investimento realizado foi somente de R$ 311 milhões 440 mil ao longo do mesmo período.
Estas cifras colocam os serviços de água e esgoto de Manaus entre os mais lucrativos do país. Os sócios investidores da Aegea Saneamento (Fundo Soberano de Cingapura e Banco Mundial) estão profundamente satisfeitos, mas as populações das periferias manauenses sofrem com a falta de água e de tratamento de esgoto.
Se de um lado, o acesso à água potável e saneamento foi reconhecido como direito humano mediante as articulações dos setores socialmente mais comprometidos, o cumprimento deste direito ainda exige muita mobilização social.
Da parte do Estado, compete uma maior responsabilidade para com os tratados assinados e uma maior sensibilidade para ouvir a voz das periferias.
Em Manaus e na Amazônia já há evidentes demonstrações de que a privatização não produz resultados positivos para estas zonas urbanas e nem para as populações das áreas rurais. Não é por acaso que ocorre mundo afora uma onda de reestatização das empresas de abastecimento de água e esgoto.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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