A Assembleia Legislativa do Amazonas, como todos os parlamentos do Brasil, cuida para evitar a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar denúncias de corrupção na Seinfra (Secretaria de Estado de Infraestrutura) e na Suhab (Superintendência de Habitação do Amazonas). As denúncias de superfaturamento em contratos, pagamento de obras fantasmas e pagamento de servidores que não trabalham foram feitas pelo ex-secretário das duas secretarias, o engenheiro Gilberto Alves de Deus. O que ele traz à luz é apenas a ponta do iceberg. Por isso, se justificaria a criação de uma CPI para apurar todos os contratos, que não são poucos. Mas como não há Poder Legislativo no Brasil que não seja subserviente ao Poder Executivo, a maioria dos deputados rejeitam qualquer iniciativa do sentido de fiscalizar o dono do cofre do Estado. E para quem acha que não há motivos para criação de uma CPI, listamos abaixo dez motivos para uma investigação séria no âmbito do parlamento estadual.
- Não são apenas três casos apontados por Gilberto de Deus que merecem investigação. A Seinfra, em 2013, tinha mais de 300 contratos ativos. O que o ex-secretário apurou e encontrou irregularidades foram apenas alguns desses contratos que têm financiamento do governo federal, através do Banco do Brasil, que pediu uma inspeção nas obras. Foram vistoriadas apenas 12 obras, segundo o líder do governo na ALE, deputado David Almeida (PSD).
- Outros contratos investigados também apresentaram problemas. Um parecer do Ministério Publico de Contas assinado pelo procurador Ruy Marcelo de Alencar sobre as contas da Seinfra do Exercício de 2013, relata que foram fiscalizados 16 contratos pelas diretorias de controle externo do Tribunal de Contas do Estado, a título de amostragem dos mais de 300 contratos ativos, e em todos eles foram encontradas irregularidades, alguns com sobrepreço suficiente para pagar o serviço duas vezes. Por exemplo, em contratos de R$ 2 milhões, o TCE aponta que mais de R$ 1 milhão foi superfaturado. Ora, se houve má fé em 16, há motivos de sobra para desconfiar dos outros.
- A seinfra contrata empresas para fazer o que seria a atividade fim da secretaria. A contratação de empresas para realizar projetos básicos e executivos, que se tornou comum nos últimos governo do Amazonas, sempre chamaram a atenção pelo volume de recursos dispensados para esse fim. A empresa Laghi Engenharia ganhou do governo do Estado, em cinco anos, R$ 190 milhões, e o ex-secretário afirma que ela “vende” ao governo “projetos montados”, sem fazer um trabalho rigoroso de levantamento dos problemas. O resultado disso são os aditivos nos valores dos contratos e o superfaturamento de obras.
- O contrato com a Egus Consult foi suspenso pelo governo, mas isso não justifica a vista grossa do governo e nem dos deputados, como fiscais do Executivo, porque foram pagos quase R$ 60 milhões de um contrato de R$ 133 milhões. Tal contrato é para serviços que só deveriam ser executados por técnicos qualificados da própria secretaria. É como se um cidadão comum contratasse uma empresa para realizar uma obra na casa dele e contratasse uma segunda empresa para fiscalizar se a obra estava realmente sendo executada a contento, pagando mais caro do que se ele mesmo tivesse que viajar para fiscalizar o seu empreendimento. O contrato em si é um escândalo.
- O pagamento de obras não realizadas ou apenas iniciadas, como a Ponte do Pera, em Coari, é prática recorrente no Amazonas. Em 2008, o jornal Diário do Amazonas denunciou as “obras fantasmas” do Alto Solimões, em que R$ 18 milhões foram pagos a uma empresa contratada para realizar serviços de pavimentação de ruas em municípios do interior do Amazonas e nada havia sido feito, como ficou constatado em inspeção do TCE, à época. Agora, Gilberto de Deus afirma que a Ponte do Pera não tem nem R$ 1,5 milhão em serviços realizados, mas a empresa contratada para realizar a obra já recebeu R$ 9 milhões. Essa não deve ser a única obra com esse tipo de irregularidade. Lembremos: são mais de 300 obras tocadas pela Seinfra.
- O pagamento de R$ 26,4 milhões ou R$ 23 milhões, como diz o governo, para a empresa CR Almeida S/A nas obras do monotrilho, que mal começou e foi abortada, também precisa ser investigada. Não se justifica o pagamento, como diz o líder do governo, David Almeida, de projeto executivo e sondagens da obra. Não se está falando de R$ 26 mil, mas de R$ 26 milhões. Não dá para achar normal, até porque o governo do Estado pagou muito caro (R$ 20,9 milhões) para uma outra empresa fazer o projeto básico da obra do monotrilho.
- A saída da secretária Waldívia Alencar e a entrada de Gilberto de Deus na Seinfra ainda precisa ser explicada. Um mês antes de ser demitida pelo governador, Waldívia concedeu entrevista ao AMAZONAS ATUAL e mostrou-se empenhada no propósito de se manter no cargo, enquanto o governador disse, dias depois da saída dela, que a ex-secretária já havia pedido há algum tempo para sair. A CPI poderia convocá-la para prestar esclarecimentos. Sem a CPI a ex-secretária só pode ser convidada pelos deputados e aceita se quiser.
- Waldívia Alencar também defendeu, com um empenho fora do comum, o contrato de R$ 133 milhões com a Egus Consult para fiscalização de obras no interior do Estado. Tal contrato foi firmado em 2014, ano de eleições gerais e da reeleição do governador José Melo. A secretária afirmou que ele era necessária porque a Seinfra tinha apenas 70 técnicos para fiscalizar obras em 62 municípios e que apenas 50 engenheiros estariam disponíveis para esse trabalho; Gilberto de Deus afirma o contrário: há técnicos suficientes para realizar o trabalho de fiscalização, porque nem todos os municípios tem obras realizadas pela Seinfra. Mas um detalhe chama a atenção nesse episódio: enquanto Waldívida defendia o contrato, ele já estava suspenso, segundo o governo. A entrevista foi concedida em setembro e o contrato foi suspenso em julho, de acordo com nota oficial do governo Melo.
- O Ministério Público e o Tribunal de Contas não são os únicos órgãos que podem fiscalizar o Estado. E não há motivos para acreditar que agora, após as denúncias feitas pelo ex-secretário, haverá mobilização dos órgãos de controle para barrar a corrupção. Até por que as denúncias de Gilberto de Deus não são exatamente novas. Este site de notícias, o AMAZONAS ATUAL, já havia denunciado o pagamento de valores exorbitantes nas obras do monotrilho; há quatro meses, o mesmo site publicou matéria denunciando o pagamento até aquele momento de R$ 7 milhões nas obras da Ponte do Pera; os contratos coma Laghi Engenharia também já haviam sido questionados neste espaço, exatamente pelo fato de a Seinfra, com o corpo técnico que dispõe, contratar uma empresa para fazer os projetos de obras; o contrato com a Egus Consult vem sendo questionado desde o início deste ano também neste espaço de notícias.
- As “obras fantasmas” do Alto Solimões dormitam no Judiciário do Amazonas, sem que ninguém tenha sido punido, sete anos depois de o Ministério Público do Estado do Amazonas apresentar ação civil pública. O processo, depois de alguns anos, foi desmembrado pela juiza Etelvina Braga, para que fossem abertos processos individuais contra os prefeitos envolvidos no caso, em cada comarca do interior. O desmembramento foi feito em 2011 e depois disso não se ouviu mais falar no assunto. O Ministério Público, autor da ação, não mais se mobilizou para ver o processo julgado. Portanto, é necessário que forças externas ao Judiciário e ao Ministério público se mobilizem no caso atual para que as denúncias sejam realmente investigadas e os responsáveis, punidos.
A CPI não é garantia de que os fatos serão investigados; o governo poderia, como faz o Executivo no Congresso Nacional, mobilizar sua base na ALE para se infiltrar na comissão e evitar que ela investigue os fatos com profundidade. Para um trabalho mais eficiente, seria necessário, também, que fossem contratados profissionais para analisar contratos e fiscalizar obras; um serviço de consultoria que a Assembleia não dispões. Nesses tempos de crise, poderia ser alegado que o Parlamento não tem dinheiro para tal atividade, mas a assembleia gasta muito dinheiro com atividades para a qual não foi criada. Enfim, se houver boa vontade, a Assembleia Legislativa pode dar uma grande contribuição para a sociedade amazonense no sentido de identificar os malfeitos do governo e apontar o culpados, que até aqui ainda não são conhecidos.
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
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