A violência pode se manifestar de variadas formas e assumir diversos tons de gravidade. Porém, mesmo diante dessas múltiplas formas de expressão, levanta-se a possibilidade de uma violência estrutural, ou seja, interroga-se acerca dos variados tipos de violência terem uma raiz comum, seja de ordem psicológica, sociológica e antropológica.
Dentre os fatores da violência e criminalidade, quais os que mais direta e frequentemente comporiam o feixe de sua raiz comum?
Ainda que se considere a ampla diversidade cultural e social, estudiosos sugerem a possibilidade da violência estrutural. As modalidades de violência (doméstica, étnica, sexual, urbana, no trabalho, no trânsito…) muitas vezes embaçam e fazem parecer inútil ou desnecessário tratar dos aspectos estruturais da violência. Alguns especialistas consideram uma generalização arriscada ou uma abstração ineficaz falar de violência estrutural.
Os analistas que trabalham com a hipótese da violência estrutural sugerem que ela está na base da produção das demais violências. Tratar-se-ia de uma violência original, aquela a partir da qual podem desdobrar-se outras formas violências, inclusive mais especializadas. A violência estrutural, por essa abordagem, constituir-se-ia assim numa fonte de violências periféricas.
Segundo pesquisas acerca da violência estrutural, há sinais concretos dessa possível violência estrutural. Tal como há registro de violência desde o início da história humana (extermínio de grupo por outro na pré-história, genocídio de povos na antiguidade, guerras de extermínio e de dominação, rituais de sacrifício de grupos e de sociedades, povos reduzidos à escravidão…), também são bastantes remotas as iniciativas e os esforços pela superação das formas de violência. Há referências de violência estrutural como de pacifismo e de busca de justiça desde a antiguidade. A dialética entre a cultura de violência e a busca pela cultura de paz atravessa o tempo e as diversas humanidades, em distintas culturas e sociedades.
Muito diferente do que postulam certas teses deterministas, a violência e a paz são aprendidas. Pesquisadores e cientistas (antropólogos, sociólogos, psicólogos) do desenvolvimento humano esclarecem que a agressividade humana é algo aprendido e sofre variação cultural. A violência, o crime e a delinquência não seriam processos inatos, embora certas características genéticas possam predispor a certos comportamentos. Distintamente do que pensa o senso comum, que muitas vezes alardeia que “quem é bandido, nasce bandido”, tanto pesquisas como a prática cotidiana demonstram que a agressividade constante é algo aprendido desde a infância. Por ser brutalmente tratado, ser privado de direitos básicos ou ter esses direitos violados, às vezes desde os primeiros meses de vida, o indivíduo passa a perceber somente hostilidade no ambiente a sua volta. E desenvolve uma linguagem e uma forma de inserção social identificada com a cultura da violência e do crime.
Para enfrentar a violência estrutural, cujos componentes predominantes seriam sociológicos, Marx e Engels propuseram, no curso dos debates sobre capitalismo e socialismo no séc. XIX, o emprego violência revolucionária.
No entendimento do sociólogo francês Émile Durkheim, a anomia social, entendida como fraqueza das instituições sociais fundamentais para socializar o indivíduo (família, escola, igrejas, prisões e do próprio direito – de efetividade das leis de convivência social), colabora e favorece o aparecimento de comportamentos sociais desviantes. Com isso, Durkheim indica que as causas da violência e do crime devem ser procuradas na sociedade e não apenas no delinquente.
Robert Merton, sociólogo da escola americana, aponta que a anomia serve para compreender a escalada dos crimes violentos, afirmando que a pobreza estrutural e a exclusão de muitos da sociedade de consumo potencializam essa situação de anomia que contribui com a prática da violência. Para Merton, haveria sim uma alta correlação entre indicadores sociais e a prática de crimes violentos (sequestros, tráficos, homicídios, latrocínios etc).
Para Milton Santos, “a violência estrutural resulta da presença e das manifestações conjuntas, nessa era da globalização, do dinheiro em estado puro, da competividade em estado puro e da potência em estado puro, cuja associação conduz à emergência de novos totalitarismos”, dentre os quais podemos citar o do extremismo ideológico, o do consumismo, o da informação e o da indiferença às graves questões socioeconômicas de fundo. Esse processo se revelaria na priorização de políticas repressivas, tais como a glamourização das prisões em massa como sinônimo de “justiça”, o aumento dos efetivos policiais, e o desprezo às questões de fundo, valorizando a retomada da ideia de que a injustiça e a desigualdade social são consequências inevitáveis da sociedade, uma fatalidade natural de qualquer regime político e modelo socioeconômico. Com isso, justificar-se-ia a institucionalização da violência estrutural.
Nesse sentido, passou-se a fazer predominar o combate às violências periféricas, desprestigiando o enfrentamento da violência estrutural, atuando sobretudo no campo das consequências ou dos desdobramentos (guerra contra as drogas, criminalização dos adolescentes e jovens de vulneráveis de áreas periféricas – sem ocupação, emprego e escolarização fundamental -, prisões em massa, valorização da cultura das armas, fomento à “justiça com as própria mãos”, ampliação de ações de assepsia social etc).
Quando o Estado reduz sua atuação ao combate do crime, desvalorizando o tratamento dos fatores da violência e da criminalidade, age meramente sobre os efeitos ou derivados, deixando de contribuir, de fato, para inibir a violência e promover a segurança pública. A ostentação de aparatos de polícia ostensiva, de polícia investigativa e a ênfase tão somente em números do combate ao crime podem até alcançar alguma eficiência quantitativa, todavia, não geram resultados socialmente eficazes em termos de segurança. Concretamente sequer se visualizam os processos de violência estrutural.
Outro relevante aspecto a considerar como fomentador da violência estrutural é a anomia institucional, no sentido de gerar incertezas funcionais e obstruir o acesso à justiça. Quando os membros do sistema de justiça agem em desacordo com os princípios e regras que regulam o devido processo legal, violando leis fundamentais, a fim de condenar a qualquer custo certas pessoas ou agentes, dão causa a uma ruptura com a institucionalidade. Ocorre então que, a partir de instituições essenciais do próprio Estado, opera-se e reproduz a violência estrutural e suas várias manifestações periféricas.
Há outros processos reprodutores da violência estrutural capazes de manifestarem-se em diversas formas de violência e de criminalidade periféricas. Tais processos demandam qualificada atenção, investigação e providências de enfrentamento adequado. O combate à violência estrutural supõe, enfim, responsável atuação estatal, ampla mobilização social e comprometimento político concreto em favor da formação de uma cultura de justiça, de liberdade e de paz.
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