Por Fábio Fabrini e Mariana Carneiro, da Folhapress
BRASÍLIA-DF – A Justiça rejeitou, por ora, a denúncia do Ministério Público Federal contra o fundador do site The Intercep Brasil, Glenn Greenwald, que era acusado de envolvimento no hackeamento de mensagens de autoridades como o ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol.
A decisão do juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara da Justiça Federal em Brasília, vale até que se resolva controvérsia a respeito de liminar (decisão provisória) do ministro do STF Gilmar Mendes.
Em agosto do ano passado, Gilmar proibiu “as autoridades públicas e seus órgãos de apuração administrativa ou criminal” de “praticar atos que visem à responsabilização” de Glenn “pela recepção, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia, ante a proteção do sigilo constitucional da fonte jornalística”.
Com a decisão de Leite, Glenn fica livre ao menos por enquanto de ação penal sobre o caso. Na época, ele havia dito que a denúncia era “uma tentativa óbvia de atacar a imprensa livre em retaliação pelas revelações que relatamos sobre o ministro Moro e o governo Bolsonaro”.
Já os demais denunciados passam agora à condição de réus e terão de responder ao processo pelos crimes a eles atribuídos: organização criminosa, associação criminosa, lavagem de dinheiro, invasão de dispositivo informático alheio e interceptação ilegal.
Trata-se de Walter Delgatti Netto e Thiago Eliezer Martins Santos, que, segundo a acusação, atuavam como líderes do grupo responsável pelo hackeamento; Danilo Cristiano Marques, suposto “testa de ferro” de Delgatti; Gustavo Henrique Elias Santos, que teria desenvolvido técnicas que permitiram a invasão do Telegram; a mulher dele, Suelen Oliveira, acusada de agir como laranja em fraudes; e Luiz Molição, que teria sido porta-voz do grupo nas conversas com Glenn.
Para o juiz, estão presentes na denúncia os requisitos legais, bem como suficientes indícios de autoria e materialidade dos crimes, o que justifica a abertura da ação contra o grupo.
Glenn recebeu os diálogos da Lava Jato e os publicou por meio de uma série de reportagens do Intercept, algumas delas em parceria com outros veículos de imprensa, como a Folha.
O jornalista foi denunciado mesmo sem ter sido investigado nem indiciado pela Polícia Federal, mas o procurador Wellington Oliveira, do Ministério Público Federal em Brasília, entendeu que ficou demonstrado, em um áudio encontrado em um computador apreendido, que o jornalista orientou Molição a apagar mensagens.
Isso, segundo o procurador, caracterizou “clara conduta de participação auxiliar no delito, buscando subverter a ideia de proteção a fonte jornalística em uma imunidade para orientação de criminosos”.
Em vídeo divulgado no Twitter, Glenn afirmou que a decisão do juiz é uma boa notícia, mas não suficiente. Ele disse que seus advogados vão agora pedir ao Supremo uma manifestação esclarecendo que a denúncia não é só contrária à liminar de Gilmar, mas à liberdade de imprensa, conforme endossaram entidades do setor. “Todos disseram que essa denúncia é um ataque grave contra uma imprensa livre. Agora, nossos advogados vão ao STF para ter uma decisão deixando isso bem claro”, declarou.
O jornalista criticou o procurador da República autor da acusação. Lembrou que a Justiça rejeitou recentemente denúncia dele contra o presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, por suposta calúnia contra Moro. “Ele está abusando de seu poder contra os inimigos do senhor Sergio Moro.”
O advogado Ariovaldo Moreira, que defende Delgatti, Elias e Suelen disse não ter tido acesso à decisão e que, por ora, não poderia comentá-la. A Folha não localizou os representantes dos demais réus.
Em sua decisão, Leite afirma que, pelo contexto dos diálogos, Molição revela dúvida sobre o que fazer e, apesar de Glenn mencionar que não poderia ajudá-lo, o instiga a eliminar as mensagens, “de forma a não ligá-lo ao material ilícito”.
“Pelo nosso sistema penal, esta conduta integra uma das formas de participação moral, atraindo sua responsabilidade sobre a conduta praticada. Neste ponto, entendo que há clara tentativa de obstar o trabalho de apuração do ilícito, não sendo possível utilizar a prerrogativa de sigilo da fonte para criar uma excludente de ilicitude”, escreveu.
O magistrado entendeu que o jornalista não pode sugerir o que o “agente do ato ilícito deve fazer para escapar do trabalho persecutório do Estado”. “Pode, sim, manter segredo e não revelar para autoridades públicas a identificação de sua fonte, mas sem qualquer instigação ou reforço de uma ideia já existente no agente que dificulte o trabalho apuratório”, acrescentou.
Leite disse concordar com o procurador da República quando ele pontua que há indícios de que o encorajamento supostamente praticado por Glenn “não foi apenas para aparentar que
todo o conteúdo foi recebido pelo jornalista de uma única vez e a publicação ocorrido após a entrega de todo material”.
“O denunciado Glenn recebeu posteriormente, e após a publicação das conversas do então juiz federal Sergio Moro e procuradores integrantes da operação Lava Jato, outro material de conteúdo ilícito (em 22/06/2019), situação que o coloca como instigador da conduta dos outros denunciados e não mero receptador de conteúdo ilícito”, observou.
O juiz afirmou que os ataques estavam ocorrendo e, “pela lógica do contexto, o jornalista incitou os “outros denunciados a continuarem as invasões”.
Leite ponderou, contudo, que há “dúvida razoável” sobre se a decisão de Gilmar impede a denúncia contra o jornalista. Diante disso, tendo em vista que a questão está judicializada, considerou ser prudente aguardar o desfecho do caso no Supremo.
O MPF em Brasília requereu ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que peça ao Supremo a reversão da liminar, o que abriria caminho para Glenn ser processado.
Para Leite, a seu sentir, a decisão de Gilmar adotou “um sentido amplo e extensivo, e comporta a interpretação de obstar a deflagração de qualquer ato persecutório estatal, tanto na fase investigativa quanto judicial”.
“Os termos utilizados de ‘abstenção de responsabilidade penal’, bem como a destinação ‘às autoridades públicas e seus órgãos de apuração criminal’ são genéricos e constituem, a princípio, um salvo conduto a qualquer ato persecutório neste feito contra o jornalista”, escreveu.
Na denúncia, um dos trechos apresentados pelo procurador como prova da participação de Glenn foi a transcrição de uma conversa com Molição, suposto porta-voz do grupo acusado. “Vou explicar, como jornalistas, e obviamente eu preciso tomar cuidado como com tudo o que estou falando sobre ‘essa assunto’, como jornalistas, nós temos uma obrigação ética para ‘co-dizer’ (?) nossa fonte”, disse Glenn, segundo a transcrição.
“Isso é nossa obrigação. Então, nós não podemos fazer nada que pode criar um risco que eles [os investigadores] podem descobrir ‘o identidade’ de nossa fonte. Então, para gente, nós vamos… como eu disse não podemos apagar todas as conversas porque precisamos manter, mas vamos ter uma cópia num lugar muito seguro… se precisarmos. Pra vocês, nós já salvamos todos [os arquivos], nós já recebemos todos. Eu acho que não tem nenhum propósito, nenhum motivo para vocês manter nada, entendeu?”, continuou o jornalista. Glenn, por fim, acrescentou: “Mas isso é sua, sua escolha, mas estou falando e isso não vai prejudicar nada que estamos fazendo, se você apaga”.
Molição então disse que o grupo queria “uma opinião” do jornalista, que respondeu, segundo a transcrição: “Sim, sim. É difícil porque eu não posso te dar conselho, mas eu eu eu eu tenho a obrigação para proteger meu fonte e essa obrigação é uma obrigação pra mim que é muito séria, muito grave, e nós vamos fazer tudo para fazer isso, entendeu?”.
No entendimento do procurador, nesse trecho houve uma aparente confusão entre os interlocutores: Molição estava perguntando sobre se o grupo deveria copiar mensagens de Telegram de novas vítimas, mas Glenn se esquivou de responder sobre isso, pois sabia que a conduta era irregular.
Para o procurador, Glenn, “de forma livre, consciente e voluntária, auxiliou, incentivou e orientou, de maneira direta, o grupo criminoso, durante a prática delitiva, agindo como garantidor do grupo, obtendo vantagem financeira com a conduta aqui descrita (ao divulgar as conversas em seu site)”.
Oliveira, no entanto, não apresentou na denúncia uma eventual aferição de lucros do Intercept para justificar a afirmação. Embora cite a questão financeira na peça, o procurador não denunciou Glenn por nenhum crime relacionado a isso.
A denúncia contra Glenn provocou a reação de diversas autoridades e entidades de defesa da liberdade de imprensa.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse na ocasião que se trata de “uma ameaça”. “Jornalismo não é crime. Sem jornalismo livre não há democracia”.