Por Iara Lemos, da Folhapress
BRASÍLIA – Apesar de comemorar a decisão liminar do STF (Supremo Tribunal Federal) de aplicar já nas eleições de novembro a exigência de divisão equânime das verbas eleitorais entre candidatos negros e brancos, líderes de movimentos pela igualdade racial dizem temer que, sem uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, haja maior margem para burla.
Na quarta-feira, 9, o ministro Ricardo Lewandowski determinou que a cota financeira para candidatos negros seja aplicada já nas eleições deste ano. Há a expectativa de que ele submeta em breve sua decisão liminar (provisória) aos outros dez ministros da corte.
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tinha criado a reserva financeira para concorrentes negros em julgamento realizado no mês passado, mas para valer só a partir de 2022, devido à proximidade do pleito municipal.
Provocado pelo PSOL, Lewandowski determinou que a norma valha já em 2020, obrigando os partidos a destinar a verba do fundo eleitoral de maneira proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos. A mesma regra deverá ser aplicada à propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio.
O TSE ainda precisa estabelecer uma resolução do tribunal detalhando as regras de seu funcionamento, o que terá de incluir mecanismos para evitar burlas já cogitadas pelos próprios ministros da corte.
Entre a lista de preocupações está o fato de que tanto nas pesquisas censitárias do IBGE como no registro de candidatos da Justiça Eleitoral a raça ou a cor é declarada pela própria pessoa. Ou seja, cabe ao candidato assinalar se é branco, preto, pardo, indígena ou amarelo.
“Foi uma ação muito importante (do TSE e STF), mas tem restrições. Não ficou muito claro de que forma será regulamentado, porque ficou muito nas mãos dos partidos. A falta de regulamentação pode prejudicar a presença negra da política”, diz o professor José Vicente, doutor em Educação e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares.
Vicente, que também é fundador e presidente da Afrobras (Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Socio Cultural), afirma que, embora haja uma determinação judicial, parcela dos partidos pode apresentar resistência a cumprir regra. Ele não é o único a levantar essas questões. A criação da cota também despertou no meio político e jurídico a discussão sobre hipóteses de burla, não só fora da lei, mas usando inclusive mecanismos legais.
Mesmo com pretos e pardos representando 56% da população nacional, os partidos resistem a formar chapas nessa proporção e a lançá-los na disputa de cargos de relevância. “Os partidos vão fazer de tudo para nos prejudicar. O que queremos e precisamos agora é que o Congresso construa uma legislação para que se cumpra a lei. O Congresso precisa se debruçar sobre esse tema”, defende o professor.
Outras práticas possíveis para contornar a regra, apontadas por especialistas e também pelo meio político, são a concentração de verbas em um único ou poucos candidatos negros (já que a cota é de financiamento, não de vagas), as doações entre candidatos (negros poderiam repassar parte de sua cota para brancos) e o já conhecido esquema de laranjas, que é o desvio escamoteado e ilegal, para candidatos homens, da cota de recursos (30%) destinada às candidatas mulheres.
Considerado um dos principais representantes do movimento negro no Congresso, o senador Paulo Paim (PT-RS) defende que uma legislação seja criada, mas diz não acreditar que isso seja possível no curto prazo. Para ele, a ampla maioria branca do Parlamento dificultaria o trâmite.
“Você acha que os 90% dos congressistas vão aprovar uma lei para a minoria? A lei não teria força para passar, não agora, mesmo com essa decisão do STF. Ainda temos muito que batalhar”, afirma.
A sugestão do senador é que a comunidade negra acompanhe de perto como se dará a divisão dos recursos e, assim, use a experiência na discussão de uma possível futura lei. “Espero que, depois do primeiro teste, tenhamos força para transformar essa determinação judicial em lei, para que ela fique permanente e definitiva. A nossa batalha não acaba aqui”.
Benedita da Silva (PT-RJ), deputada federal e autora do questionamento que resultou na decisão do TSE, reforça que haverá dificuldades. Para ela, que ingressou na corte em nome da ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), a batalha no Congresso precisa ser empurrada pelo resultado das eleições deste ano.
“Isso (cumprimento da cota) independe só de lei, agora é uma decisão de ordem política dos partidos, mas sabemos que o TSE tem de estabelecer critérios”, disse. “Quem conhece a Casa, o Congresso, sabe que é uma relação de força. Cabe aos movimentos pressionar, a gente sabe como funciona também. Já tentei várias vezes pedir urgência nos projetos e nunca consegui. Agora, cabe aos movimentos negros fortalecer ainda mais a mobilização”.
Presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra, o advogado Humberto Adami afirma que, a partir de agora, caberá à comunidade negra atuar como fiscalizadora. “Vai dizer que não vai cumprir? Quero ver. O cara pode discutir se tem lei ou não, mas ele não pode descumprir a decisão judicial. E nós vamos estar em cima”, afirma.
Minoria entre os candidatos, os negros figuram menos ainda entre os eleitos – em 2018, por exemplo, só 3 dos 27 governadores eleitos se declaram pardos. Dois anos antes, nas eleições municipais de 2016, só 4 dos 26 prefeitos de capital vitoriosos se declararam pardos (nenhum se disseram preto).
Estudos apontam que entre as principais razões de negros e negras terem desempenho pior do que brancos nas urnas está a falta de estrutura e de recursos de campanha oferecidos pelos partidos. Para o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, quadros qualificados não faltam à comunidade negra.
“Temos muitos jovens negros, cheios de garra e prontos para uma disputa, mas que não têm recursos. O racismo está em todos os lugares, e na política nunca foi diferente”, diz o professor.