Por Reinaldo José Lopes, da Folhapress
SÃO CARLOS – A fama de caçadora solitária e antissocial da onça-pintada (Panthera onca) precisa ser revisada, indica um estudo feito no Pantanal e na Venezuela. O monitoramento de longo prazo dos machos da espécie indica que, na verdade, eles são capazes de forjar alianças entre si, dormindo e se alimentando juntos, enfrentando adversários e talvez até colaborando para monopolizar juntos as fêmeas de determinada região.
As observações sugerem que há mais em comum entre as onças e os leões, mais famosos felinos sociais, do que se imaginava até agora. Haveria ainda alguns paralelos entre o superpredador das Américas e os guepardos, velocíssimos felinos africanos que também registram colaborações entre machos adultos.
A grande diferença é que, por enquanto, as parcerias entre os machos de onça-pintada só foram registradas no caso de duplas, enquanto o processo envolve mais indivíduos no caso de leões e guepardos. Até onde se sabe, as outras espécies de grandes felinos, como os tigres, leopardos e suçuaranas, têm uma estrutura social e comportamento mais solitários.
Os resultados acabam de ser publicados na revista científica Behavioral Ecology and Sociobiology por uma equipe internacional de cientistas, que inclui diversos brasileiros e também especialistas da Polônia, dos EUA, do México e da Venezuela.
Para identificar as alianças de longo prazo das duplas de machos, o grupo se baseou em informações de armadilhas fotográficas (que obtêm imagens automaticamente quando o animal chega perto delas), monitoramento dos indivíduos por colares com GPS e rádio, avaliações genéticas (em geral, por meio das fezes das onças) e avistamentos em campo.
Os dados foram coletados no Pantanal brasileiro e na região venezuelana dos Llanos (pronuncia-se “Djanos”). Essas áreas possuem populações relativamente abundantes de onças-pintadas, graças à riqueza de recursos para os animais (com uma alta densidade de presas naturais e introduzidas) e também são ambientes parecidos entre si, com inundações sazonais e mosaicos de vegetação relativamente aberta e matas ciliares.
Isso facilita a coordenação entre indivíduos da coalizão e o monitoramento por parte dos pesquisadores. Além disso, acredita-se que a colaboração entre grandes felinos adultos seja mais comum nesse tipo de ambiente aberto, levando em conta que ela ocorre nas savanas africanas no caso de leões e guepardos.
A primeira constatação do estudo é que as alianças entre dois machos adultos são bastante raras. De um total de mais de 7.000 registros de onças-pintadas do sexo masculino no estudo, apenas 70 são exemplos de cooperação entre eles (o conjunto inclui também 18 casos de agressão e nove de “tolerância”, ou seja, nos quais os machos não se agridem, mas também não cooperam).
No caso em que as duplas se formam, no entanto, o companheirismo pode durar vários anos. Nos Llanos da Venezuela, por exemplo, dois machos foram flagrados juntos 40 vezes, de 2013 a 2018.
Costumavam viajar pelo território em dupla e também marcá-lo (para demonstrar sua posse dele diante de outros machos) em conjunto. Em algumas ocasiões, um deles acasalava com uma fêmea enquanto o outro ficava por perto. Ambos expandiram seus domínios expulsando outros machos ao longo do tempo.
Já no norte do Pantanal, uma dessas parcerias foi registrada entre 2015 e 2018. Além de viajar e marcar o território juntos, eles costumavam cheirar a cara um do outro e foram vistos compartilhando dois cadáveres de gado e expulsando juntos um jovem macho invasor. Um dado interessante é que os pesquisadores não chegaram a identificar, por meio de análises genéticas, algum parentesco entre os aliados -em outras espécies, machos adultos que são irmãos, por exemplo, podem acabar formando coalizões.
Diferentemente do que acontece com os leões, as duplas de aliados não caçam juntas e não parecem formar colaborações com as fêmeas. Há indícios de que as parcerias tendem a se formar em locais onde há abundância de fêmeas, cada uma delas com territórios pequenos e vizinhos, o que indicaria que os machos estão se aliando para garantir o acesso às parceiras e excluir outros machos da competição por elas.
Um detalhe intrigante é que as onças-pintadas de hoje, mesmo as que habitam os ambientes mais ricos em recursos, como o Pantanal, têm à sua disposição relativamente poucas presas de grande porte -mas essa é uma situação relativamente recente na história evolutiva delas.
No fim da Era do Gelo, há cerca de 10 mil anos, a América do Sul estava repleta de herbívoros de grande porte, como cavalos, preguiças e tatus gigantes, espécies de lhamas que povoavam boa parte do Brasil e “supercapivaras”. Seria algo muito mais parecido com a África atual, onde os leões caçam em bando.
“Pode ser que, nessa época, as onças-pintadas fossem maiores e formassem coalizões para capturar esses grandes herbívoros. Também havia outros grandes predadores para competir com elas, como ursos e dentes-de-sabre”, disse à reportagem o pesquisador venezuelano Rafael Hoogesteijn, um dos coautores do novo estudo, que trabalha na ONG conservacionista Panthera.
“Com a extinção desses grandes herbívoros da savana, as onças diminuíram de tamanho e se tornaram mais especializadas na captura de grandes répteis tropicais, como sucuris, jacarés e tartarugas, o que explica o fato de terem a mordida mais forte de todos os grandes felinos”, explica ele.