“No dia em que não houver lugar para o índio no mundo, não haverá lugar para ninguém” (Ailton Krenak)
No momento em que redijo esse texto, há uma votação importante e histórica acontecendo no Supremo Tribunal Federal: o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que discorre sobre o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas (com 2 votos a favor e 2 votos contra).
A titulo de explicação, Marco Temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.
Ou seja, ela desconsidera a apropriação de terras tradicionalmente ocupadas depois desse período. Esse termo surgiu em 2008, durante o julgamento dos limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, situada em Roraima com divisa entre Guiana e Venezuela.
Essa área tinha sido demarcada em 2005, durante o Governo Lula, uma área de mais de 1,7 milhão de hectares. Com isso, muitos fazendeiros e garimpeiros precisaram sair do local.
A partir disso, um Senador de Roraima (do PT, pasmem) resolveu questionar o STF. Foi realizado o julgamento, os ministros decidiram manter a demarcação. Vitória!! Só que não.
O ex-ministro do STF Carlos Ayres Brito (relator da época) na justificativa de seu voto diz que a demarcação daquela área faz sentido porque os indígenas estavam ocupando aquela terra na data de promulgação da Constituição Federal de 1988 (5 de outubro).
Traduzindo: ele usou um critério que não existia em nenhuma legislação brasileira, o que acabou abrindo precedentes para ruralistas requererem vários territórios. Lembrando que muitos indígenas fugiram das suas terras durante o Regime Militar para não serem mortos.
Uma dessas etnias que fugiu foi os Xokleng, que viviam em um território que abarcava os 3 estados da Região Sul do Brasil. Eles ocupavam essa área gigantesca até meados do século XX, mas foi também nesse período a chegada de vários imigrantes europeus no Brasil, que vinham com a promessa de ganhar terras de graça. Terras que já eram dos Xokleng e de outras etnias indígenas. Terras que foram roubadas desses indígenas, ainda que com muita resistência. Um verdadeiro genocídio indígena. Aliás, mais um episódio de extermínio.
Disso surge o imbróglio jurídico que estamos presenciando. Essas etnias que fugiram, assentaram-se numa região em Blumenau (SC), que foi demarcada em 14 mil hectares. Mas em 2003, a Funai entendeu que essa área deveria ser ampliada para 37 mil hectares, considerando a cultura e outros aspectos socioculturais destes indígenas.
Fiz esse breve resgate histórico para dizer que o conceito de TERRA para indígenas é diferente do nosso. Pra eles tem a ver com as tradições, com a ancestralidade, com a sua cultura muito particular que deve ser respeitada, enaltecida, assegurada juntamente ao seu direito de existir e ter seu território intocado por terceiros.
A demarcação não é mera delimitação de espaço, ela segue critérios antropológicos também, da ideia de pertencimento, de construção de sentido, da reprodução da vida propriamente dita.
Um estudo feito pela ONU (Organização das Nações Unidas) mostra que áreas ocupadas por indígenas tendem a ser mais preservadas, o que nos leva a compreender que existe uma conexão real e recíproca entre eles e a terra. São um só.
O extermínio de indígenas é também o apagamento da nossa identidade, da nossa história. Todo brasileiro tem sangue indígena no seu DNA, seja diretamente ou em algum lugar da sua árvore genealógica.
O Marco Temporal, além de uma aberração jurídica, institucionaliza o genocídio de Povos Originários. Quando um indígena morre, morre um pouco de nós, morre o Brasil.
“Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar” (Célia Xakriabá)
Sabrina Castro é Administradora, Cientista Ambiental e graduanda em Ciência Política
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